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Capítulo 33 – Rugas

— Ele não vai falar, não adianta — disse Ricardo.

— Ô, Martim, assim você nos quebra. Dá pelo menos uma visão geral de como foi, e tal… — disse Tomás.

— Foi bom, já não basta saberem disso? — respondeu Martim, impaciente.

— Tá, mas tipo… 

— Entendam, colegas, Martim é um cavalheiro. Ele nunca vai contar os detalhes dos momentos privados dele com a capitã.

— Obrigado, Ricardo.

Martim, Carlos, Ricardo e Tomás estavam juntos como sempre e corriam ao redor do castelo, cumprindo sua rotina de exercícios matinais. Em um certo momento, foram alcançados por outro grupo de soldados e pararam de falar por alguns minutos. Assim que ficaram sozinhos novamente, a conversa continuou:

— Mas e agora? Como ficam as coisas entre vocês? — perguntou Carlos.

— Sei lá, ainda não pensei nisso.

— É que não pega bem, ela é a comandante e você é um comandado. Não parece certo.

— Por que não?

— Ué… não é uma coisa comum.

— Mas também não é comum uma mulher comandar um batalhão de homens. E isso não tem nada a ver. O que a gente faz no nosso tempo livre não é da conta de ninguém.

— Mais ou menos, Martim — disse Ricardo. — As pessoas comentam, ficam apontando os dedos, cochichando.

— Bom, suponho que tenha razão, mas eu não quero pensar muito nisso agora. A gente acabou de ficar juntos pela primeira vez.

— Muito bem, amigo. Só ouça meu conselho… tomem cuidado. As coisas na guarda não estão exatamente pacíficas, né? Sugiro que vocês sejam discretos.

Neste momento, Martim e seus amigos passavam perto de Maria, que já tinha terminado sua corrida e estava se preparando para o próximo treino. Assim que se aproximaram, Ricardo disse:

— Bom dia.

— Bom dia, soldado — ela respondeu cordialmente.

— Bom dia, capitã — disse Tomás.

— Bom dia.

— Bom dia — disse Carlos, acenando com a cabeça e dando um sorriso exagerado. — Está radiante hoje, capitã.

Martim deu um tapa na cabeça de Carlos e sorriu sem graça para Maria. Ela não pareceu se incomodar, pois respondeu com um largo sorriso:

— Obrigada, soldado.

Quando se afastaram, Martim falou:

— Ótima maneira de ser discreto, Carlos. Não ouviu o conselho de Ricardo?

— Desculpa, não resisti — riu o amigo.

Nos dias que se seguiram, Maria estava bem-humorada, e Martim estava satisfeito em saber que era por sua causa. Mas também aparecia tensa em muitas ocasiões. Sempre que o via, ela se desmanchava em um sorriso, mas ele reparava que a tensão voltava assim que se afastavam. As coisas na guarda ainda não tinham sido resolvidas completamente, e era constante o surgimento de brigas e discussões entre os soldados. 

Depois do incidente durante a viagem a Gama, os guardas que se aliaram a Alvar uniram-se para demonstrar hostilidade em relação aos demais. Sendo o principal responsável pela divisão da tropa, Martim era um alvo constante de seus ataques. As tensões finalmente estouraram quando, durante um treinamento, surgiu uma briga entre Percival e Marcel:

— Seu moleque! Vou te arrebentar! — disse Percival, com os dentes cerrados.

— Pode tentar — respondeu o jovem soldado.

Eles começaram a atacar um ao outro com a espada longa, que empunhavam naquele dia. Martim se interpôs entre os dois:

— Ei, ei, chega!

— Quer morrer também, Martim? — era Paulo, que se aproximava para se juntar a Percival.

— Vamos deixar pra lá — disse Carlos, puxando os amigos. — Vamos embora.

— Esse moleque está achando que é alguma coisa — disse Percival.

— Você é que me atacou, seu bosta! Quase acertou minha barriga.

— E daí? Vamos resolver isso, então.

— Ninguém vai resolver nada aqui — disse Martim.

— Covarde, como sempre, não é? — era Silas, que chegava para agitar.

— Cale a boca!

Silas sorriu e logo em seguida ergueu sua espada para golpear Martim no peito. Ele conseguiu defender-se, ciente de que se não o fizesse teria se ferido gravemente. As armas de treino não eram afiadas, mas do jeito como Silas o golpeou, empurrando a lâmina de frente, isso não faria muita diferença.

— Está maluco? — perguntou Martim. — Quase me acertou.

Sem dar tempo para Martim pensar, Silas atacou de novo, tão rápido que conseguiu atingir a barriga de seu oponente. Martim caiu no chão, sem ar, colocando as mãos sobre o local atingido. Olhou para baixo e viu que não havia sangue sob a camisa, mas sua pele já começava a ficar roxa.

— Levante-se, seu bosta! — disse Silas, com uma voz arrogante.

Risos e gargalhadas se espalharam entre os soldados, enquanto Martim se esforçava para erguer-se. Os soldados tinham se agrupado em um círculo ao redor deles, e ninguém dizia nada. Seus amigos o olhavam assustados, e os aliados de Silas traziam um sorriso maldoso no rosto.

Martim encaixou seus pés no chão da forma como gostava, e segurou a espada firmemente. Respirou fundo, sentiu o peso familiar em sua mão e sorriu quando percebeu que a lâmina se tornava uma extensão do seu braço.

Silas avançou, e desta vez Martim conseguiu repelir o golpe com sucesso, batendo com a espada para o lado ao mesmo tempo que saía com o corpo da frente. Sem pensar no que fazia, e agindo por puro instinto, Martim contra-atacou, batendo com o pomo de sua espada no nariz de Silas, espirrando sangue para todo lado.

O soldado parou, sem acreditar no que tinha acontecido. Seu rosto exibia um misto de assombro e ódio, e seus olhos perfuravam Martim com uma raiva prestes a explodir. Limpou o sangue com as costas da mão, olhou por cima do ombro de seu adversário e fez um sinal com a cabeça. Imediatamente, Martim sentiu dois homens segurando-o pelas costas e ouviu uma enorme gritaria indicando que a luta se generalizou.

Sem conseguir se desvencilhar, olhou horrorizado quando Silas se aproximou e disse:

— Não é tão corajoso quando sabe que vai morrer, não é?

Em seguida, Martim sentiu o pescoço sendo amassado pelo punho de Silas. O soco desferido trancou sua garganta, e ele viu-se impossibilitado de respirar. Caiu de joelhos no chão, colocou as mãos no pescoço e começou a lutar por ar. Durante intermináveis segundos, sentiu sua vida se esvaindo de seu corpo. Sua vista escureceu e ele perdeu os sentidos.


— Martim?

Abriu os olhos.

— Ele acordou.

Rostos se formaram em sua frente. Embaçados, mas conhecidos. Carlos, Marcel, Ricardo, Ulimar, Antenor… e Maria.

— Você está bem?

Martim tentou falar, mas não conseguiu. Sua voz não saía.

— Ajudem-no a se sentar.

Estava ainda na área de treinamento. Exceto por ele e por seus amigos, não havia mais ninguém ali. Fazendo um esforço enorme, conseguiu engolir algumas vezes, mas sentiu muita dor.

— Alguém tem água? — Conseguiu sussurrar.

Sentiu um cantil sendo colocado em sua mão e apressou-se a beber alguns goles, o que produziu um enorme alívio.

— Ah, bem melhor agora. O que aconteceu?

Foi Ricardo quem respondeu:

— Um pega geral. Foi pancada pra todo lado. Tomás teve que ir até a sala de cura. Não se preocupe, está tudo bem com ele — acrescentou, ao ver a expressão de preocupação em Martim —, mas se a capitã não tivesse chegado a tempo, acho que ia ter morte hoje.

Martim olhou para Maria. Seu olhar era triste, preocupado, e havia rugas entre suas sobrancelhas.

— Você teve sorte, Martim — disse Marcel. — Silas o pegou de jeito.

— Aquele covarde, eles me seguraram.

Maria disse:

— Eu vou pedir um favor a vocês. Não se metam em confusão, aguentem as provocações. Eu vou tentar resolver isso.

— Mas o que vai fazer, capitã? — perguntou Marcel.

— Eu não sei ainda. Eu acho que vou ter que conversar com a rainha… talvez precise expulsar alguns homens.

— Mas tem praticamente metade de cada lado.

— É, eu sei. Por isso eu preciso que vocês não entrem em conflito. — Ela olhou para Martim. — Só vai acabar tornando as coisas ruins para vocês.

Eles se olharam e concordaram antes de ir embora, cabisbaixos. Martim ainda ficou um tempo ali, pois queria conversar com Maria. Assim que ficaram sozinhos, ela disse:

— Martim, isso não foi nada inteligente.

— Me desculpe. Eu só estava tentando defender Marcel…

— Esse Silas me parece ser um tipo perigoso. Deixe-me tentar resolver…

— Já pedi desculpas! — ele disse, bravo. — Não vai acontecer novamente.

Ela o olhou de forma repreensiva. Percebendo a grosseria, ele disse:

— Isso é muito frustrante. Não há nada que eu possa fazer?

— Por enquanto, não. Por favor, Martim.

— Está bem.

Ela o ajudou a se levantar. Já estava se sentindo melhor, respirando normalmente. Enquanto caminhavam, Maria disse:

— Temos folga semana que vem. Um dia inteiro longe desse castelo.

— É tudo o que eu mais quero nesse momento. Eu sinto tanto a sua falta.

— Eu também.

— Posso te dar um beijo?

— Melhor não.

— Mas não tem ninguém aqui — disse Martim, abrindo os braços e girando ao redor.

— Mesmo assim, a gente não pode arriscar. As coisas estão muito tensas…

— Está bem, está bem — ele disse, carrancudo. — Vou me trocar, já estou atrasado para a minha primeira ronda. Tchau, Maria.

— Prometa para mim que vai ficar longe de confusão.

— Eu prometo.


Depois de uma longa semana, finalmente Martim estava prestes a sair do castelo. Ele combinou com Maria de encontrá-la no jardim norte, próximo ao anoitecer. Era uma área pouco frequentada, então podiam ficar juntos sem medo de serem vistos.

Vestiu sua melhor roupa, o que significava a mesma camisa verde e calças marrons que usou no baile. Ela não demorou para aparecer. Tinha se arrumado também. Usava um vestido simples, branco, e um corpete preto por cima. Seus cabelos estavam presos em um arranjo de tranças ao redor da cabeça. Não era a produção exagerada que as mulheres nobres usavam em festas, e Martim adorou-a por isso. Achou-a deslumbrante, exceto pelas rugas entre as sobrancelhas, que pelo jeito tinham se tornado parte permanente de sua expressão.

— Oi, Maria. Que cara é essa?

— Oi, Martim. Não é nada, eu… 

Maria parou de falar. Depois chacoalhou a cabeça, respirou fundo e, como se tivesse feito uma mágica, seu rosto se transfigurou, assumindo um aspecto leve e sorridente.

— Não importa, eu já esqueci.

— Fico feliz em saber. — Ele se aproximou e beijou-a. — Você está linda.

— Obrigada, você também se arrumou. Gostei.

— Eu não tenho muitas roupas, então me desculpe se já viu esta antes.

— Está lindo.

Martim estendeu o braço para ela, e ela o aceitou. Lentamente, eles saíram do castelo, rumo à cidade.


A praça estava, como de costume, cheia de gente, mas naquela noite em particular havia uma aglomeração ainda maior de pessoas. Um grupo de teatro famoso visitava a cidade. Martim e Maria sentaram-se em um dos bancos improvisados com caixas de madeira que haviam sido montadas em frente a um enorme palco, segurando canecas de cerveja. Enquanto bebiam, apreciaram o espetáculo, que contava a história de um cavaleiro que salvava uma camponesa da morte, matando alguns bandidos que tinham capturado-a, para depois descobrir que ela era uma princesa perdida de um reino distante.

Às vezes, Martim deixava de olhar o espetáculo apenas para apreciar o rosto de Maria ao seu lado. Ela se emocionou com a história, rindo e chorando com as reviravoltas do cavaleiro e sua princesa até o final feliz.

Depois do espetáculo, caminharam entre as barracas de vendedores. Martim ficou impressionado pela quantidade de coisas que atraíam o interesse de Maria. Ela parava em praticamente todos os lugares, perguntava o preço de tudo, mas não comprava muita coisa. Acabaram comprando, juntos, uma fita para presentear Clara, a quem estavam indo visitar.

Depois de terem esquadrinhado cada canto do mercado, finalmente foram até o pequeno casebre onde morava a irmã de Martim. Após bater na porta, Martim se afastou e ficou esperando ao lado de Maria. Clara não demorou a aparecer:

— Martim, Maria! Que saudades! — Ela abraçou Maria primeiro, com uma força carinhosamente desproporcional. Depois pulou em cima do irmão, deu-lhe um beijo na boca e apertou seu pescoço também com muita força.

— Entrem.

Martim sentiu imediatamente o cheiro delicioso vindo da cozinha. Clara disse:

— Adivinhe o que estou cozinhando, Martim.

— Pelo cheiro… É o seu cozido de frango, não é?

— Sim, fui comprar tudo hoje de manhã. Espero que goste, Maria.

— A gente pode ajudar de alguma forma? — ela perguntou.

— Não, já está tudo quase pronto. Só falta finalizar e já podem comer.

— Como assim, podem comer? — perguntou Maria. — Você não vai comer com a gente?

— Martim não te contou? Eu vou sair hoje à noite, tenho uma festa. Só volto amanhã.

— Vai sair? Mas a gente veio te visitar, Clara. Martim, que história é essa?

— E-eu… — Martim ficou sem graça e não conseguiu responder. Clara veio em seu socorro:

— Martim me falou que vocês quase não conseguem ficar juntos no castelo, então eu me ofereci para preparar um jantar romântico para vocês.

— Clara — disse Martim. — Eu ia contar… depois.

— Tá, tanto faz. Não precisam me agradecer. A gente bota o papo em dia amanhã. Agora, se me derem licença, eu vou subir para me arrumar.

Maria ficou olhando para Martim com um olhar de reprovação. Querendo escapar de levar uma bronca, Martim começou a trabalhar na cozinha, terminando de preparar o cozido. Depois de alguns minutos, Clara desceu e despediu-se e deixou os dois sozinhos.

— Isso não foi legal, Martim — reclamou Maria.

— Discordo, a Clara é muito legal, ela cozinhou pra gente e está deixando a gente ficar na casa dela.

— Estou falando de você. Está abusando da boa vontade da sua irmã.

— Ei, a ideia foi dela, você não ouviu? Eu só aceitei.

— Pois não devia.

— Está bem, então vamos voltar para o castelo, a gente leva o cozido em uma panela, não vamos desperdiçar, né? Aí a gente acha um cantinho lá para comer escondido.

— Engraçadinho…

— A gente pode dormir lá no dormitório da guarda, depois. Se a gente ficar bem quietinho talvez ninguém perceba a gente ali.

— Tá bom, vamos ficar — ela disse, resignada, mas com um sorriso no rosto.

— Tem certeza?

— É, seria falta de educação recusar agora. E, Martim… 

— Sim?

— A gente vai poder dormir no quarto?

— Você ouviu, ela só vai voltar amanhã. Agora, eu não sei você, mas dormir não está nos meus planos para esta noite…


Clara apareceu somente no meio da manhã, cansada, mas bastante animada. Cumprimentou Maria e Martim, que preparavam o almoço, antes de subir para descansar um pouco. Acabou dormindo bastante tempo, e Martim teve que chamá-la com veemência para que se juntasse a eles na refeição.

Durante toda a tarde, os três conversaram animadamente. Clara queria saber todos os detalhes sobre como o novo casal havia se acertado, e Martim insistia em tentar descobrir com quem Clara havia saído e onde era a tal festa. Somente Clara foi bem sucedida em obter respostas, e Martim ficou sem saber muita coisa sobre as aventuras noturnas da irmã.

No final da tarde, Martim e Maria se despediram e foram até o cercado da cachorrinha Sereia. Ela estava particularmente feliz naquele dia, pulando e correndo mais do que o de costume. Martim achou que era por causa da companhia adicional. Sereia adorava brincar com outras pessoas além dele.

Já era noite quando caminhavam de volta ao castelo, bastante entristecidos pelo final de seu dia juntos. Maria estava muito esquisita.

— Você está estranha. O que está acontecendo?

— Eu já estou com saudades de ficar sozinha com você — ela disse, forçando um sorriso.

— É a rainha, não é? Aconteceu alguma coisa?

— Não aconteceu nada.

— Você conversou com ela sobre o que aconteceu?

Maria soltou um suspiro e disse:

— Martim, a rainha não se importa com essas coisas. Ela só… bom, deixa quieto, não quero falar sobre ela.

Ela estava novamente com aquelas rugas na testa, e isso o atormentou mais do que qualquer outra coisa. Podia aguentar uma vida inteira de abusos, levar uma surra por dia, mas saber que ela passava por uma pressão como aquela, sofrendo todo dia por causa de seu posto e das intrigas, era suficiente para destruí-lo.

Ao chegarem no castelo, Martim se despediu de Maria. Deu-lhe um demorado beijo e abraçou-a com toda a sua força. Enquanto ela se afastava, com a cabeça baixa, ele pensou se não poderia fazer algo para ajudá-la a resolver aquela situação.

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Olá, eu sou Daniel.Lucredio!

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