Siegfried bebeu uma caneca de leite quente e se debruçou sobre a mesa, analisando as listas de provisões sem muito interesse, quando Dara veio e deslizou suavemente no banco; a garota parou assim que os seus quadris estavam a meia palma de distância, se inclinou para mais perto e fitou os papéis, com a cabeça meio inclinada para o lado, quase descansando no ombro dele:
— Tá fazendo o quê?
— … Nada… — O rapaz afastou os papéis e, quando virou o rosto para encará-la, notou que parecia mais tímida que o normal. — O que foi?
— Nada! — ela respondeu de imediato, tomando distância e alisando os cabelos loiros, fugindo do contato visual. — E-eu só quis dizer oi…
— …
— Hum. B-bem… E-eu também… Eh! Ahhhh! — Ela esticou as mãos trêmulas e cheias de feridas, entregando um lenço. — E-eu fiz isso… Pra você!
O tecido era quente e macio, feito de lã, e só um pouco maior do que a sua mão. Branco, com um desenho simples costurado em linhas negras.
— Um corvo?
— N-não! É um pássaro! Como no símbolo da minha casa, vê? — Ela mostrou outro lenço; um com a imagem de um pássaro azul. — A minha mãe tricotou esse pra mim, quando eu era bebê. Achei que cê ia gostar, sabe.
Ela voltou a alisar o cabelo.
— Sei que não ficou muito bom, mas… Ah! Sei lá… Quer saber, esquece, é só um lenço bobo mesmo. Me dá, eu vou jogar fora.
Mas quando Dara esticou a mão e tentou pegá-lo de volta, Siegfried não deixou.
— Vou ficar com ele, se não se importa.
— Ah! T-tá bom… Legal.
Ela sorriu timidamente.
E esse foi o ponto alto do seu dia.
Uma semana havia se passado desde a partida do conde e a discussão com Gwen. Tinha pensado em enviar alguém atrás dela, mas sabia que isso de nada adiantaria; se ela não quisesse ser encontrada, não a encontrariam, então tentou esquecer do assunto.
Tinha outros problemas para lidar.
A condessa insistia em recusar todos os guardas que o rapaz lhe oferecia.
— São pra sua proteção, vossa graça — tentou explicar, depois dela ter atacado um dos seus homens e arranhado o seu rosto.
Ela não se mostrou razoável.
— Não preciso da sua proteção! E se tentar alguma coisa, qualquer coisa, não pense que o seu título vai te salvar. Meu marido está longe e eu ainda sou a senhora dessa fortaleza! Pouco me custa pôr uma corda em volta do seu pescoço.
Depois disso, ela passou a usar o seu sobrinho Dorian como cão de guarda. Uma posição que ele parecia orgulhoso de desempenhar; andava para lá e pra cá atrás da condessa, com o peito estufado e a mão descansando no seu cinto da espada, como se estivesse ansioso por um combate; felizmente, seus homens tinham mais bom senso do que ele.
Mas se a mãe era toda raiva e desprezo, a filha mais se parecia com uma estátua feita de gelo.
Emelia não precisava de guardas. Estava sempre no mesmo lugar; sentada sozinha em uma mesa, encarando a tábua de madeira — e às vezes um prato de comida intocado —, com as mãos no colo. Nada dizia quando falavam com ela, mas de vez em quando se obrigava a comer uma ou duas mordidas se a mãe mandasse.
Tinha estado sozinha desde que seu pai vendeu Brynna para Elenor, mas parecia ter piorado com a proposta de casamento de Eradan.
O resto do dia foi apenas mais do mesmo; Elly o acompanhou em volta da fortaleza, falando quais ordens tinham sido cumpridas, quais não foram e quais estavam sendo. Tudo andava devagar e ele foi obrigado a suspender algumas tarefas graças a pequena nevasca que veio de tarde e persistiu até o anoitecer; algo pelo qual as servas pareciam bastante gratas.
“Não é à toa que o conde gosta tanto de partir pro campo de batalha”, pensou, enquanto dava uma volta pela fortaleza. “Administrar é um saco!”
Estava passando ao lado da casa de banho, quando ouviu a voz abafada de uma garota e os encontrou: uma serva montando um de seus guardas ali mesmo, do lado de fora.
Siegfried subiu o capuz para se proteger da neve e os ignorou, se perguntando como conseguiam ficar nus naquele frio. A nevasca ficou mais fraca, mas cada floco de neve que tocava a sua pele era como uma fina agulha de gelo caindo do céu escuro e sem lua.
Foi então que encontrou Emelia, andando de um lado para o outro no pátio de treinamento.
— Eme? — chamou, e a garota tomou um susto.
— S-Sieg!?
— Tá fazendo o quê aqui fora?
Ela não respondeu, ao invés disso o encarou com aqueles olhos cor-de-avelã, tremendo de frio por baixo do seu casaco de lã e vestido de algodão. O rapaz lembrou do casal mais cedo e chegou a uma conclusão problemática:
— Eme, quem cê tá esperando?
— Ah! Ah! E-eu…
— Por isso cê tava tão assustada quando falaram do casamento. Não pensei que cê já tivesse um namorado. É algum dos guardas?
— Quê!?
— Não é da minha conta, mas isso pode te dar alguns problemas, sabe? Se cê engravidar–
— E-eu não tenho namorado nenhum! — O rosto dela era um tomate de tão vermelho. — P-por que cê pensou logo isso!? Eu ainda nem… N-não importa!
— Então o que cê tá fazendo?
— A Gwen… E-eu preciso falar com ela. E-eu… Eu mudei de ideia! Não quero mais fazer isso.
— Do que cê tá falando?
— O plano. E-eu não posso mais fazer isso. Ela não… Ela não me disse que ia ser assim. Ela não me disse nada! Eradan… S-se eu soubesse… Eu não quero me casar com ele! Não quero mais fazer isso! Tem que dizer a ela!
— A Gwen sumiu!
— Por isso mesmo! Você é o guardião dela, não é? Sabe onde encontrá-la. Tem que pará-la! Eu não posso me casar com ele! Ela devia ter me dito antes! Não posso!
— Eme, se acalma! Do que cê tá falando?
— V-você não sabe? Tem que saber! E-ela disse… Naquele dia, quando nos conhecemos. Depois do meu pai ter executado o tio Kellen. Ela me contou. Os olhos dela. Eu disse que só a nobreza mais pura tinha olhos azuis. Os olhos da família real. Da linhagem Graylock. Ela disse que eu tinha razão, você mesmo viu! É o guardião dela, tem que saber!
A mente de Siegfried congelou e de repente ele não sabia o que fazer.
— Eu sirvo ao conde — disse por fim.
— Não! Por que está dizendo isso!? — Ela tocou o peito com as mãos e seu rosto ficou pálido. — É o guardião dela! A protegeu todo esse tempo, desde que meu pai a deu a você! E a forma como se comporta… Nunca fica bêbado, não dorme com prostitutas, protegeu Brynna quando a acusaram de traição… Por minha causa… É um cavaleiro da igreja, sei disso! É tão forte quanto meu pai e mais cavalheiresco do que qualquer homem que já conheci. Não pode ser um mercenário! Não sei como alguém acredita nisso. É um nobre, posso ver em seus olhos. Não são azuis, mas nenhum mercenário de baixo nascimento seria tão…
A garota parecia a ponto de chorar.
— Por que não me diz a verdade!? Ela me disse. Eu já sei. Por que mente?
— Eme, me escuta!
— …
— Que plano? O que a Gwen te disse?
Mas ela não teve tempo de responder. Assim que abriu a boca, ouviram o grito da sentinela:
— Inimigos!