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Sem reflexões para remoer o passado, sem previsões para sonhar o futuro, apenas a certeza do momento. É nesse instante que escolho viver a partir de agora.

Sairei desta gaiola, custe o que custar.

Tentei me erguer, mas fraquejei. Tentei me arrastar, mas o chão parecia mais acolhedor. Tentei estender a mão, mas meus dedos não alcançaram a saída desta realidade monocromática.

— Já chega! Você tá tentando se matar! — Vie me repreendeu.

— Você mesma disse… — eu tossi, sentindo o gosto metálico do sangue. — Apenas os mais fortes podem ser verdadeiramente livres. Se eu não puder ser o mais forte, farei todos serem mais fracos que eu.

Eu não olhei para trás em nenhum momento, mas sabia que minhas palavras não eram capazes de silenciar ela.

— Pare de falar asneiras…

— Bem dito, pequena centelha — disse a bolsa à frente, sobrepondo a fala de Vie.

Eu ri em meio a tosses secas.

— Bingo… — sussurrei.

Minha visão estava turva, mas era impossível não reconhecer aquelas gigantescas e recurvas lâminas que a bolsa — não, que o Devorador — exibia como dentes.

— Se você realmente quer trilhar um caminho inexistente, irei lhe proporcionar uma amostra do que sou capaz de fazer — sua voz saiu das profundezas daquela boca, mesmo que não tivesse articulações para exercer o dom da fala.

Eu cedi meu braço esquerdo sem temor, a asquerosa língua o enrolou e o levou para ser abocanhado. Não me entenda mal, mas se eu precisasse me aliar com o próprio cramunhão para alcançar minha liberdade, eu entregaria meu braço de mãos beijadas.

— Faça isso logo — resmunguei, tentando me manter consciente.

— Escute com atenção, mulher perecível. Você tem a chance de estender a validade da vida de seu morimbundo companheiro, porém, isso não será isento de consequências. Cada segundo de vida que você ganhar para ele, será proporcional a cada gota de prana que você tem a me oferecer. Está disposta a pagar esse preço?

Ela hesitou por um momento, o tempo parecia congelar. Ao ver meu corpo inerte, com a vida se esvaindo aos poucos, seus olhos se encheram de uma expectativa desesperadora, ciente de que cada segundo poderia ser o meu último.

— Sim — sua voz saiu firme. — Estou  disposta.

O Devorador soltou uma gargalhada, um som profundo e ameaçador que ecoou por toda a realidade desvanecida. As sombras dançavam ao seu redor, como se a própria escuridão estivesse viva e faminta, ansiosa para consumir tudo o que encontrasse em seu caminho.

— Vie, por que? — Tive de engolir a seco o ácido desespero que se formou em minha saliva. Não pretendia impedir ela, muito menos suplicar que vivesse, apenas queria compreender o motivo de ir tão longe para me manter vivo.

— É como eu pensei, você nunca vai deixar de ser um idiota — ela disse, enquanto estendia seu braço na direção da boca. — Você pelo menos sabe o motivo de eu ter rejeitado seu beijo?

Lembre-se, viva o momento, deixe o passado para aqueles presos em seus próprios arrependimentos.

— Não faço ideia — respondi.

— Porque eu senti a falsidade em seus lábios. Desde o dia em nos conhecemos, te atormentar virou meu passatempo predileto. Eu sempre odiei a cor de meus cabelos até você os elogiar. Theo, quero me tornar a merda de uma Redentora para proteger você! Entende como tudo em minha vida se resume a você?! Então não venha me perguntar o ‘por que’ eu quero salvar o bunda mole que eu tanto amo!

Nossos olhares permaneciam fixos um no outro, em um silêncio denso que parecia preencher todo o espaço entre nós. Era diferente de todas as vezes anteriores. Desta vez, eu tinha certeza de que ela não esperava uma resposta minha.

A ternura em seu olhar acalmava minhas palpitações, a convicção em seu tom aquecia meu coração. Prometi viver somente o momento, e por isso eu ansiava por um eterno momento ao seu lado.

“Era isso o que você estava sentindo este tempo todo, Vie?”

Suspirei, fechando meus olhos na esperança das pálpebras segurarem essas emoções que tanto tentavam vazar.

— Que assim seja. Eu serei o intermediador dessa conexão desejada.

DEVORE O FIO!

25 de Dezembro, ano 774 a.R.

Realidade Desvanecida, Desconhecido.

Após suas palavras, a bolsa se saciou com nossos braços.

Seus dentes pontiagudos nos envolveram em um aperto fúnebre. Vie conteve seus gritos ocupando sua boca com mordidas, o sangue que escorreu de seus lábios mordiscados se perdeu em meio a exposição cruel de seus poros. Ela urrou de dor não conseguindo resistir aquela tortura, seus poros jorravam prana como uma correnteza até o interior do Devorador. 

— Já se passaram séculos, talvez milênios — sussurrou o Devorador, sua voz carregada de um peso ancestral — E a Entropia continua a macular meu paladar com seu gosto terroso.

— Vie… consegue me ouvir? — Perguntei ao ver seu estado, seu corpo, uma sombra do que um dia foi, parecia ter sido privado de alimento por meses. Mesmo enquanto permanecia sentada sobre suas coxas, seus olhos opacos refletiam uma possível lucidez fragmentada.

Sua pele alva, antes imaculada, agora estava encardida com as marcas de seu próprio sangue, se tornando outra testemunha de incontáveis banquetes passados.

Eu conseguia escutar o ar que raspava em sua garganta como um chiado angustiante, contudo saber que ela conseguia respirar tirou um pouco do peso de meus ombros.

— O que você fez?

O Devorador gargalhou, e então disse:

— Maldita, pirralha. Ela parou o tempo somente para aglomerar o máximo de prana possível em seu corpo, mesmo que isso tenha arregaçado seus receptores, devo admitir, as crias de Logos dão tanto trabalho como o próprio. 

“Aquela irresponsável”, um sorriso sorrateiro incomodava meus lábios. Parece que não era apenas eu que estava disposto a ir até às últimas consequências.

— Não fiquei tão convencido, pequena centelha. Sua amiga já era.

— Você fala como se pudesse entender nós, humanos. 

— Seu braço está prestes a transbordar, isso não é motivo de comoção?

Uma voz rouca, que falhava a cada palavra, se intrometeu em nossa discussão.

— Sua bolsa fodida… Dá pra parar de enrolar?

Só há uma pessoa que poderia falar algo tão rude assim. Meu sorriso antes singelo, agora estava estampado em meu rosto. 

— Como pode — nem o Devorador queria acreditar.

—  Cumpra com a sua parte seu carniceiro, ou eu faço questão de virar você do avesso… — sua árida voz saiu em meio a tosses secas.

— O que te faz pensar assim? É nítida sua impotência, não? Mas se você prefere ser ignorante, usarei suas gírias para clarear os poucos neurônios que restam. Eu posso, e talvez deva, ferrar vocês dois neste exato instante — nos ameaçou.

— Não me faça rir… talvez algo que não seja sangue saia da minha boca — debochei.  — Se essa quantidade não foi suficiente, qual é o preço que eu tenho que pagar para alcançar a liberdade?

— Você está começando a agir como uma centelha — insinuou. Era impossível ver um sorriso pela falta de expressão da bolsa, mas apostaria minha mão boa que ele estava contente. — Eu vou voltar, ou melhor, vou esperar seu retorno. Sei que ele será em breve.

A língua do Devorador envolveu meu braço restante, puxando-o com uma força implacável. Enquanto o sangue, rubro como os fios que coroavam minha cabeça, secava sobre as feridas de minha pele, uma ausência de dor me dominava. No entanto, a mordida que se seguiu fez minha alma gritar em agonia, temendo o pior.

Cada mastigada dos dentes afiados era como uma sinfonia dissonante de ossos sendo reajustados, uma cacofonia terrível que ecoava incessantemente em minha mente.

E então, em um último ato de carnificina, os dentes do Devorador se encontraram mais uma vez, liberando faíscas obsidianas das frestas entre eles. Essas faíscas percorreram meu corpo, como se eu fosse feito para conduzi-las. A adrenalina inundou meus músculos, apesar das feridas em minha pele.

Por fim, o Devorador cuspiu meus braços, agora imbuídos pelo vazio primordial. As pontas dos meus dedos tornaram-se afiadas o suficiente para dilacerar a própria realidade ao meu redor. O mundo testemunhou a verdadeira ausência de cor, uma escuridão voraz que ameaçava devorar tudo à sua volta.

“As garras que tiraram meus sentimentos, desta vez, trouxeram esperança”, refletia enquanto observava minhas novas armas.

“Erga-se”, essa era a minha vontade, e desta vez meu corpo obedeceu.

“Caminhe”, o fogo que adormecia meus pés, era sufocado pelo chão a cada pisada.

Então ali estava eu, diante da barreira que me mantinha aprisionado nesta realidade monótona. Com um golpe silencioso, rasguei a barreira com facilidade.

Um turbilhão de cores irrompeu, inundando o ambiente antes monocromático. Após alguns passos, um brilho avançou em minha direção, e sem que eu pudesse reagir, douradas correntes me prenderam, envolvendo-me como serpentes. Mas ao invés de medo ou desconforto, senti uma profunda conexão com aquela energia, como se ela fosse uma extensão de minha própria essência.

As correntes não me apertavam; ao contrário, elas acariciavam minha alma, aquecendo-me com uma ternura reconfortante. Era como se o universo estivesse me abraçando, acolhendo-me com seus braços calorosos.

“Essas correntes…”, quando percebi, era tarde demais. 

Metade do bar estava em ruínas, testemunha do caos que se desencadeou enquanto estava fora. O espetáculo luminescente das estrelas brilhava como nunca, iluminando as cinzas que restavam das chamas carmesins. Em meio às tábuas destruídas, um corpo jazia abandonado, seu cabelo longo e desgrenhado obscureceu seu rosto. Mas eu não precisava ver seus traços para saber que aqueles fios carmins pertenciam a minha…

Modificador de probabilidade: 20%

— Mãe… — tentei falar, mas os elos das correntes se atrelaram imediatamente à minha boca semiaberta, silenciando-me.

— Faça como quiser, minha parte do roteiro está feita — a voz distorcida ecoou junto ao estalar das chamas que surgiram à frente daquele infernoso Tecelão, não duvidaria que aquela porta o levaria para o próprio inferno.

Uma presença esmagadora adiante me fez meu corpo congelar. Tentei erguer minha cabeça, mas as correntes restringiam minha visão apenas à minha progenitora.

Então, uma voz imponente ressoou, seu timbre grave preencheu o ambiente. Eu não conseguia discernir de onde vinha; era como se fosse onipresente.

— Elyza. Sem temor, você desafiou o Destino uma última vez. E você sabe muito bem que um Tecelão não demonstra sua piedade uma segunda vez.

“Levanta, mãe! Levanta!” A cada instante, eu esperava uma resposta de minha mãe, que afundava gradualmente na fissura diante de nós. Era como se estivesse sendo engolida por areia movediça, mas, em vez de areia, eram estrelas que iluminavam aquele abismo. O desespero tomou conta de mim, e meus instintos estavam à flor da pele. Mordia as correntes com força, em tentativas frenéticas de me libertar.

Os elos, de repente, trincaram.

Uma calmaria encheu todo o meu âmago. As correntes se desfizeram como o derradeiro suspiro de um abraço, a poeira luminosa que restou ao vento assumiu a forma fugaz de minha mãe por um instante.

A bolsa, inesperadamente, triturou a corrente que nos unia. Curioso, lancei um olhar por cima dos ombros, avistando Vie, lutando para manter-se de pé, apoiada na borda da fissura que se abriu, exibindo seu dedo do meio como um gesto de cortesia.

    Modificador de probabilidade: 20%

— Não estou sozinho nessa — sussurrei para mim mesmo, e agarrando minha bolsa com firmeza, dei início a uma corrida funesta. 

Meus passos descoordenados ecoaram como um eco dissonante na noite. A cada pisada, um raio de instabilidade percorria meu corpo, como se eu estivesse lutando contra a própria gravidade.

— Você devia ter obedecido sua progenitora — a voz ressoou, penetrando minha mente como uma adaga afiada.

— Quem é você?! — Gritei em resposta, lutando para erguer meu olhar.

De repente, o chão sob meus pés começou a se transformar. Poças d’água, refletindo o brilho das estrelas no céu noturno, surgiram ao meu redor, se distorcendo em mãos que emergiram para tentar me parar a qualquer custo. 

Sem hesitar, brandi minha bolsa como um escudo, podando uma após a outra. Quando ela se empanturrou, a joguei em minhas costas, prosseguindo a retaliação com as minhas próprias garras.

Meus instintos clamavam para que eu desistisse, o amargor da morte pairava sobre minha língua, mas eu persistia. Não era coragem, tampouco teimosia; era apenas a vontade de um filho decidido a salvar a mulher que o trouxe ao mundo.

À esquerda, um imenso portal se abriu, estava óbvio a iminência de algo da mesma grandeza.

Eu hesitei. Um maldito fio vermelho enredou-se em torno de minha perna.

— Desgraça! Estou tão perto — gritei, no momento em que estava prestes a cortar o fio, outro se prendeu em meu pulso, e então outro, até aprisionar meu outro braço.

Amaldiçoei mais do que nunca a cor vermelha. A língua da bolsa devorava os fios como se estivesse sugando macarrão. Com uma única mão livre, cortei as amarras que prendiam meu outro braço, lutando contra o implacável Destino que pretendia me sepultar.

Dizem que quando você está prestes a morrer, sua vida inteira passa diante dos seus olhos, mas… por que tudo parou então? 

Em um instante, os fios se tornaram estáticos, minha mãe ainda podia ser salva, tudo havia parado. E mesmo assim, ainda não conseguia ver o rosto do homem que desgraçou a minha vida.

De repente algo havia me empurrado, quando percebi estava de bruços ao chão.

— Theo… Eu tinha um presente para você. Sem meias, sem fininhos, era um bom presente, juro. Engraçado eu não sei como consigo falar, mesmo tendo parado o tempo, mas essa droga de tempo é tudo o que tenho a oferecer a você. Só fique vivo, consegue pelo menos cumprir essa promessa? — Esvie disse a mim com um sua voz embargada.

Seu sorriso torto, com lágrimas de despedida, me deixaram sem reação. 

— Ah, e Theo. Feliz aniversário.

Então, o eterno instante encontrou seu fim, ao ser irrompido por uma mão colossal com uma velocidade assustadora, envolvendo Esvie e a esmagando.

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Olá, eu sou Pixau!

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