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— Eu já cansei de ver pedras — reclamou Júlia, sua voz propositalmente infantil tirou alguns sorrisos suaves dos outros.

A caverna era uma repetição incessante de estalactites e estalagmites, uma visão que não parecia ter fim mesmo após horas caminhando. Em certo ponto, ramificações começaram a aparecer a cada poucos quilômetros, tornando a estrutura um labirinto natural. 

O ritmo da viagem era lento, cada passo uma luta. Felipe, agora sem uma perna, se apoiava nas garotas, que se revezavam para ajudá-lo a continuar. O ar estava frio e úmido, e as plantas luminosas estavam cada vez mais escassas, mal iluminando o caminho à frente. 

Os irmãos foram recuperando a cor de suas faces ao longo da caminhada. O fortalecimento da mana em seus corpos fez com que sua taxa de regeneração fosse anormalmente alta. Não podia ser dito que estavam bem, mas um humano comum da terra pré Grande Vazio não teria resistido a ferimentos tão intensos se ocorressem em um período tão curto de tempo. Apesar disso, a esperança não crescia, todos sentiam que aquelas paredes cinzentas seriam a última coisa que veriam.

— Mas que boca, hein? Você deveria parar de reclamar de ver pedras e começar a reclamar de não ver uma saída — disse Felipe, meio em tom de brincadeira, meio de mau humor, apontando para um estranho sulco na parede que se diferenciava de todo o restante.

Algumas inscrições indecifráveis adornavam uma estranha gaveta, e, acima delas, meio crânio estava desenhado. 

— Isso aqui é uma tumba — murmurou Ana, correndo os dedos pelos padrões intrincados que pareciam contar uma história esquecida pelo tempo.

— Que lugar estranho para enterrar alguém — murmurou Alex em um comentário baixo, após um longo período em silêncio. Seus olhos estavam meio apagados pelo cansaço, e voltou a caminhar de forma arrastada após o interesse momentâneo no achado. 

Conforme avançavam, os mesmos sulcos voltaram a surgir, cada vez com mais frequência, assim como os sinais de vida. Ou melhor, os sinais de não-vida. Mortos-vivos aproximavam-se ocasionalmente com seus passos lentos, cada vez mais aterrorizantes. A carne já apodrecida quase se desprendia de seus corpos, mas não passavam de uma falsa ameaça.

— Por que eles não te atacam? — perguntou Júlia, observando um zumbi se afastar de sua líder, sem a comum tentativa de mordida.

— Não sei — respondeu Ana, dando de ombros. — Mas não vamos questionar nossa sorte agora.

A princípio todos acharam estranho, mas logo se acostumaram com a estratégia de Ana segurar seus oponentes enquanto alguém os finalizava. De maneira inesperada, os mortos-vivos recuavam diante da garota, como se impedidos de se aproximar. Isso facilitou a jornada, mas também aumentou a curiosidade e a inquietação do grupo.

— É um pouco frustrante, a mana deles é tão rala que não sinto nenhum progresso quando a absorvo — a ruiva torcia a boca ao esmagar mais um dos caminhantes que se aproximava.

“Entendo seu sentimento”, pensou Ana, rindo para si mesma ao notar que sua espada também não conseguiu uma nova marca ao perfurar o crânio de um homem desfigurado que se aproximava.

De repente, após uma curva especialmente estreita, o local se expandiu para todos os lados, retirando um pouco da sensação sufocante que os assolou desde que entraram na caverna. A grande câmara tinha paredes estranhamente lisas, como se fossem esculpidas artificialmente, reluzindo perante a luz fraca dos arredores, que também refletia nos minerais incrustados na rocha, criando um brilho etéreo. 

No centro, uma construção de pedra se erguia majestosamente, coberta de símbolos antigos que emanavam um brilho sinistro. Manchas de sangue cobriam a pedra escura, e apesar de estarem claramente secas, pareciam frescas. O altar estava cercado por um escuro abismo, tão profundo que não se podia sequer imaginar até onde levava. Apenas um estreito caminho de pedra levava a ele, continuando logo após para o outro lado da câmara. O som do vento ecoava suavemente, aumentando a sensação de mistério e perigo.

— Parece um tipo de altar de sacrifícios — falou Ana, franzindo a testa. — Mas o que estão sacrificando?

— Eu não quero saber — disse Júlia, com a voz trêmula. — Vamos só sair daqui.

— Bom, não temos muita escolha, precisamos atravessar para o outro lado — disse Ana, apontando para o caminho que se estendia além do altar. 

Eles começaram a se mover, tentando ignorar a construção sinistra. O ar parecia mais denso ali, como se a câmara estivesse impregnada com uma presença maligna. Cada passo ecoava pelo espaço, amplificando a sensação de vulnerabilidade. O abismo ao redor atraia a atenção dos jovens, mas seus olhares pareciam ser absorvidos pela escuridão infinita.

Durante o cauteloso avanço, Ana foi a primeira a notar alguém abaixado, encostado no altar, como se estivesse pegando algo, mas a distância não permitia que identificasse o que era o estranho objeto. Seus passos tornaram-se mais lentos e silenciosos, gesticulando para que os outros fizessem o mesmo. Conforme se aproximavam, a luz fraca revelou o rosto da figura.

— Natalya? — Ana perguntou, parando abruptamente com uma clara surpresa em seus olhos.

— O que estão fazendo aqui? — a Colecionadora ergueu o olhar, igualmente surpresa ao ver Ana e seu grupo. 

— Nossa missão da igreja acabou com certos imprevistos… resumindo tudo, acabamos entrando nessa caverna por acid…

Antes que pudesse terminar, Natalya se levantou e, sem aviso, desferiu um soco em direção ao peito da garota.

— O que você está fazendo? — gritou Ana, desviando por um triz, uma ação de puro reflexo.

— Não entenda errado, não tenho nada contra você, mas não posso deixar que conte sobre o que viu aqui — disse a exilada, sua voz fria e determinada, mas ao mesmo tempo com um sorriso começando a se formar. — Além disso, não vou ter outra oportunidade tão boa quanto essa de pegar a sua f… a sua “arma” para a minha coleção sem ser considerada uma traidora pelos mercenários por matar uma das famosas rainhas — seus olhos tornaram-se ainda mais gananciosos ao notar que a faca havia crescido ainda mais, metamorfoseando-se em uma curta espada.

Sem mais explicações, ela avançou com uma série de golpes de boxe, seus braços robóticos dando-lhe uma velocidade e força incríveis. Os socos eram rápidos e precisos, visando pontos vitais com uma destreza impressionante. 

“Mas que filha da puta”, Ana esquivava-se continuamente, tentando retalhar com sua espada, mas sua visão não conseguia acompanhar adequadamente a velocidade dos ataques, impedindo até mesmo de formular pensamentos além de xingamentos brutos.

Os socos ocasionalmente a acertavam, trazendo uma dor excruciante e, por vezes, arrancando pedaços de sua carne devido às pequenas arestas afiadas das próteses que incessantemente vinham em sua direção.

Júlia, vendo a luta, correu para ajudar. Com um movimento fluido, deixando claro o esforço colocado em seu treinamento, ela balançou o martelo, todos os seus músculos foram contorcendo-se para embutir uma força tremenda em direção à nova inimiga, mas não foi o suficiente para danificar os temperados braços metálicos. 

— Maldita! — a caçadora ruiva gritou, desesperada, antes de ser atingida por um poderoso soco no estômago que a levantou do chão. Seu corpo pareceu flutuar por alguns segundos, como se a própria gravidade estivesse a ignorando, mas antes que percebesse chegou ao solo com um pesado baque, vomitando sangue e restos de comida enquanto se encolhia de dor.

Alex se aproximou nesse instante, ainda cambaleando um pouco, mas mantendo uma postura firme. Aproveitando a brecha criada pela sua amante e vendo Ana também iniciar seu ataque, o garoto desferiu um golpe de suas manoplas em direção ao rosto da Colecionadora. Desviando por milímetros dos ataques simultâneos dos dois membros do grupo, a mulher girou seu esbelto corpo, formando um poderoso chute em direção ao peito do jovem caçador.

— Felipe, agora! — apesar do som agonizante de suas costelas se partindo, Alex usou toda a força que restava e tudo que aprendeu de vajramushti com os monges no último ano. Com um preciso passo de recuo no instante em que foi atingido, ele segurou firmemente a perna de Natalya.

Felipe, havia lentamente se arrastado para perto durante a luta, e sua prótese brilhava intensamente pelo acúmulo de energia. Com um impulso de sua única perna restante e uma complexa expressão de dor, ele se lançou em uma tentativa desesperada de agarrar Natalya. Ela, no entanto, ignorou sua perna presa e pegou Felipe no ar.

— Eu já te disse que com essa porcaria você nunca vai conseguir nada — sussurrou ela no ouvido do garoto da prótese. — Se você quer ser uma máquina, essa máquina também precisa ser você.

Com um frio sorriso no rosto, Natalya agarrou o braço restante de Felipe. Ela pôde ver as lágrimas suplicantes que surgiam em seu rosto, mas a força de seu aperto não diminuiu enquanto ela rasgava o corpo do jovem, removendo impiedosamente seu membro a partir do osso que se ligava diretamente à omoplata.

Felipe caiu de suas mãos como uma marionete. Todos puderam ver seus olhos se reviraram sem um único grito enquanto perdia a consciência, sua existência resumindo-se apenas a um corpo amolecido no chão.

Alex, já esgotado, caiu de joelhos, perdendo a força em seus braços devido ao choque. A mulher não o atingiu mais, deixando-o se aproximar de seu irmão. Seus olhos ferviam de ressentimento, passando de Felipe para Júlia, e depois novamente para as costas da inimiga robótica.

Nestes poucos segundos, Ana se aproximou novamente, girando para tentar um golpe lateral com a espada. Natalya bloqueou com a parte de trás de sua mão esquerda, como se afastando uma mosca, mas a força resultante do movimento empurrou a jovem mercenária para trás. O impacto quase fez Ana perder o equilíbrio, mas ela se manteve firme.

 — Por que está fazendo isso? — gritou, tentando ganhar tempo enquanto milhares de novas estratégias passavam pela sua mente, mas a esperança de sobreviver parecia cada vez mais distante.

— Eu sempre fico com o melhor prêmio. Esse é o direito dos fortes.

“Não parece ser toda a verdade”, notou Ana, olhando profundamente nos olhos da psicopata a sua frente.

Com o fim da curta frase, Natalya lançou um jab direto, mirando o rosto de sua oponente. O som do ar sendo empurrado chegou antes do soco, e em um movimento estranhamente belo, a mercenária saltou lateralmente, usando o próprio punho que ia em sua direção como ponto de apoio. Enquanto seu rosto passava ao lado do rosto de Natalya, a rainha mercenária pôde ver de forma mais ampla o caótico cenário que estava oculto pela barreira de ataques.

A postura de Alex, antes tão imponente, parecia minúscula enquanto ele chorava desesperadamente sobre o corpo de seu irmão. O sangue formava uma poça cada vez maior ao redor dos dois, mesmo com as tentativas contínuas de estancar a ferida com trapos rasgados de sua própria roupa. Júlia, ao seu lado, tentava erguer-se com pernas trêmulas, mas seu corpo curvado deixava claro que os danos internos não eram pequenos.

“Eu devia ter simplesmente virado uma cientista, não sobrevivi a tudo isso apenas para morrer nas mãos dessa lunática”, pousando atrás da Colecionadora, pensamentos pouco importantes começaram a surgir na mente.

Sua visão vagou por cada canto da estranha câmara. O ar frio entrava em seu pulmão, trazendo uma sensação estranhamente revigorante. O gosto de ferro do sangue em sua boca não era tão ruim, e o altar sombrio em conjunto com o ambiente brilhante e fantasioso a deu a sensação de estar em um filme.

Como se para a despertar, Natalya se aproximou novamente, o punho vindo a uma velocidade alarmante em um perfeito gancho de direita.

“Ironia divina, né?”, sorriu, pensando na agitada vida que teve após os mil anos sozinha. “É realmente um nome perfeito”.

Ana viu a massa de ferro que se aproximava de seu rosto com o canto dos olhos, e,com um pequeno passo para trás, deslizou pela beirada do penhasco, caindo em direção ao abismo. Seu rosto sereno transformou a cena em algo belo, uma ação quase sacrificial, contrastando fortemente com seu dedo médio estendido para frente em uma clara zombaria.

O ato inesperado pegou Natalya de surpresa. Com um leve desequilíbrio ao parar o pesado golpe que estava dando em meio ao ar, ela tentou segurar a elegante espada negra em um movimento urgente, mas foi parada por Júlia, que com um último esforço, saltou sobre ela, impedindo-a de tocar a arma.

— Você é realmente persistente — sibilou Natalya, seus olhos brilhando com desgosto.

Um golpe sem emoção atravessou o peito de Júlia. O brilhante punho metálico surgiu das costas da caçadora ruiva, e o vibrante sangue escarlate pingando acompanhava o som de um último gemido abafado. Seus olhos perderam o brilho rapidamente, e seu corpo, já sem vida, atingiu o altar ao ser lançado de forma descuidada.

A última coisa que Ana viu foi Alex se jogando em direção a Colecionadora, gritando com fúria enquanto lágrimas de sangue escorriam por suas bochechas.

A sensação de queda parecia interminável, o vento rugindo em seus ouvidos suprimia todos os outros sons. Seu corpo girou no vazio, e por um momento, tudo parecia suspenso no tempo. O choque das perdas, a adrenalina da luta, o desespero dos últimos dias de caminhada incessante. Tudo se distanciou, criando uma estranha serenidade em meio ao caos.

“Adeus, mundo”, pensou a rainha mercenária, fechando seus olhos enquanto começava a cantarolar em um baixo murmúrio, aceitando a escuridão que a abraçava por todos os lados.


Natalya suspirou profundamente, observando os corpos inconscientes ou mortos ao seu redor. O silêncio da caverna era interrompido apenas pelo som suave de respirações irregulares e o eco distante de gotas d’água caindo. Seu olhar repousou sobre as bolsas do grupo, que estavam jogadas em um canto da caverna. Com alguns passos, ela se aproximou, a luz fraca refletia nos símbolos antigos do altar quando começou a vasculhar os itens.

“saia… é hora de ir… saia… há mais insetos para serem caçados…”

Ela encontrou uma faca pequena, alguns frascos de remédios e uma agulha presa a uma linha de sutura. Nada parecia valer a pena até que suas mãos tocaram um livro desgastado. A capa era simples e as bordas estavam esfoladas pelo uso frequente. Curiosa, a Colecionadora o abriu com certo desdém, pronta para descartá-lo como o restante do conteúdo da bolsa. Mas conforme lia, seus olhos se arregalaram de surpresa.

“saia… saia… é hora de ir…”

— Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! — Natalya apertou as têmporas com as duas mãos enquanto gritava insanamente com si mesma. Marcas ficaram em seu rosto pelo repentino aperto, mas como se nunca tivessem existido, as vozes em sua cabeça fizeram uma pausa.

Ela rapidamente retirou seus rotineiros óculos escuros de lente redonda do bolso e os colocou. A luz azulada da interface holográfica refletia nas paredes do local, criando sombras dançantes que aumentavam a beleza sinistra do que estava ao seu redor.

— Abrir coleção — sussurrou a exilada, fazendo uma extensa lista surgir em sua visão. — Mostre-me minha biblioteca.

Como se ouvindo as ordens de um líder severo, a tela mudou de imediato, mostrando livros detalhados sobre diversos assuntos, desde medicina avançada até filosofia antiga, todos transbordando de um conhecimento em um nível não visto em escritos normais. A tinta não estava desgastada, e muitas das passagens estavam incompletas ou retratavam acontecimentos recentes, deixando claro que era um livro de anotações que ainda estava sendo utilizado.

— Compare-o com os demais — ordenou, sua voz ecoando no lugar vazio. Um scanner começou a analisar o livro em suas mãos, linhas de luz passando pelas páginas lentamente.

“A compatibilidade é de 100%”, disse uma voz suave, mas pouco natural, acompanhada por uma mensagem flutuante e pelo som agudo do scanner terminando seu serviço.

— Achei mais um… Quem é você, Ana? — murmurou, a curiosidade misturada com um inesperado respeito. Ela relembrou os momentos fugazes de sua luta, tanto a atual quanto o curto período enfrentando a sombra em Kurt, o estilo único de combate e o intrigante olhar que Ana demonstrara passaram pela sua mente. Havia algo mais nela, algo que Natalya não compreendia completamente.

A Colecionadora afastou a lembrança momentaneamente, voltando sua atenção novamente para o livro em suas mãos. Ela poderia sentir o peso do conhecimento apenas o segurando, e a identidade da autora misteriosa de grande parte dos escritos que coletou ao longo dos últimos anos começou a se formar.

— Espero que sobreviva — disse ela, um sorriso renovado se formando em seus lábios. — Você vai fazer parte da minha coleção.

Um último olhar foi direcionado ao abismo enquanto guardava o precioso livro na bolsa, sentindo a excitação de adicionar mais um tesouro inestimável à sua coleção. A caverna voltou ao silêncio, um cenário calmo que abrigava memórias de um campo de batalha marcado pela luta e pela coragem desesperada de pequenos brinquedos dos céus.


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E aqui, queridos leitores, chegamos ao fim do primeiro arco da história. Se você acompanhou até aqui, espero que não se importe em deixar o seu feedback na página principal da obra, seja ele com belos elogios ou com duras críticas.

Agradeço a todos que leram meus escritos, sei dos muitos defeitos, mas pretendo evoluir cada vez mais com minha escrita ao longo do tempo. Vou pegar essa próxima semana para reler tudo, podendo assim relembrar os pontos importantes e ajustar o roteiro da próxima parte da história. Apesar de já ter tudo planejado, acrescentei muitas coisas não esperadas, então preciso dessa curta pausa para evitar furos.

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