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— Oh, uma forja clássica! — os olhos de Ana brilharam com uma mistura de surpresa e fascinação. — Nunca imaginei encontrar algo assim no Brasil.

Ela já havia visto forjas antes, mas quase sempre em situações precárias ou em instalações industriais modernas, que não tinham o charme e a autenticidade das antigas forjas artesanais. Além disso, a tecnologia humana não estava funcionando adequadamente após oito séculos, o que tornava o achado ainda mais impressionante.

— Será que isso não é apenas uma perda de tempo?

A voz do De Gabriel revelava um tom de  ceticismo em relação à utilidade do achado. Ana não respondeu imediatamente, mergulhada em suas próprias reflexões enquanto seus olhos percorriam cada detalhe do local. Era possível sentir a presença do passado nas paredes de pedra desgastadas e nos objetos enegrecidos pelo tempo. Suas mãos deslizaram pelo empoeirado balcão de trabalho, explorando os diferentes metais e ferramentas cuidadosamente dispostas.

— Alguém realmente amou este lugar— murmurou ela, sua voz ecoando com uma reverência silenciosa enquanto seus olhos se fixaram em um peculiar martelo, repousando sobre a antiga bigorna. A ferramenta, desgastada pelo uso e marcada pelo tempo, emanava uma aura de história e significado que capturou a imaginação de Ana.

Ao pegar o martelo em suas mãos, uma súbita vontade se apoderou de seu corpo. Parecia que a ferramenta foi feita para ela, se encaixando perfeitamente em seus dedos. Embora nunca tivesse tentado forjar antes, Ana lembrava-se de alguns poucos livros sobre o assunto que já havia lido. Eram apenas fragmentos de conhecimento, mas já deram a base que precisava para começar.

— Acho que ficaremos aqui por um tempo.

Gabriel deu de ombros, sentando-se no balcão e observando Ana, como de costume.

Os primeiros dias na forjaria foram marcados por experimentação e aprendizado. Forjar uma espada ou mesmo moldar o metal de forma desejada revelou-se mais desafiador do que ela imaginava. No entanto, seu corpo, desenvolvido ao extremo por séculos de treinamento físico, resistia ao trabalho árduo sem se deixar abalar pela fadiga.

A forjaria tornou-se seu novo campo de batalha, um lugar onde enfrentava seus próprios limites e os desafiava. Com o tempo, Ana começou a compreender melhor os metais, o calor da fornalha e o ritmo necessário das marteladas para moldar o ferro à sua vontade.


Os anos na forja logo se transformaram em décadas, e cada nova criação representava um aprimoramento em relação à anterior. A cada espada, machado ou ferramenta agrícola que saía de suas mãos, Ana sentia uma parte de si mesma sendo imbuída no metal, conferindo-lhe não apenas forma, mas também uma história.

Com o tempo, as armas forjadas começaram a exibir uma qualidade e beleza que superaram suas expectativas iniciais. No entanto, mesmo diante desse progresso notável, ela não conseguia conter uma pontada de autocrítica.

— Eu realmente não tenho talento… que sorte tenho de ter tempo de sobra — examinando sua última criação com uma mistura de satisfação e frustração, Ana notou que suas armas já superaram tudo o que havia sido produzido na Terra, mas ainda sentiu que podia ir além.

— Ei você, o que acha disso? 

Sentado no balcão mais afastado do forno, Gabriel permanecia com os olhos fechados como se estivesse em meditação. O anjo estava em um aparente transe nos últimos anos, mas seu pé balançava ritmicamente com cada martelada de Ana, revelando que ele ainda estava ciente do mundo ao seu redor.

— Não é ruim, mas não vale a pena dar uma segunda olhada — respondeu Gabriel, pegando a pequena lança que foi jogada com destreza e avaliando-a brevemente antes de descartá-la na pilha de outras armas que se acumulavam no chão.

— É, eu sei. Quando vai parar de palhaçada e vir me ajudar?

Um sorriso frio e distante iluminou o olhar de Gabriel enquanto ele ignorava a garota, fechando novamente seus olhos cansados. O desgaste em sua essência era palpável. Ana já estava forjando há 200 anos, e neste período voltou a se sobrecarregar duas vezes. 

“A sobrecarga de sua alma está se tornando cada vez mais frequente, ela está chegando ao limite… também não sei quantas outras vezes vou aguentar…”, Gabriel ponderou, enquanto mergulhava em um estado de semi-letargia para recobrar suas forças esvaídas, deixando-se adormecer nas profundezas de sua consciência solitária e desgastada.

Ao seu lado, Ana suspirou profundamente, recuperando seu foco no ofício que abraçou com tanto fervor.

Ting… Ting… Ting…

Era uma sinfonia quase hipnótica, trazendo consigo uma sensação de saudade, desespero e até mesmo uma paixão que desafiava o tempo.

Ela, a artífice solitária nesta era esquecida, dominou as chamas como quem conduz uma orquestra de elementos primordiais. Sua bigorna era seu santuário, e cada golpe representava uma oração silenciosa em busca da perfeição. O metal cedia sob sua força, transformando-se em algo novo, cada movimento era uma dança entre criadora e criação, marcada pelo ritmo constante de seu martelo. Para ela, este era quase o poder de um deus.

Ela era Ana, a última artesã. 

A última humana.


— Gabriel, você está aí? — a voz de Ana cortou o silêncio, arrancando Gabriel de seus pensamentos introspectivos.

“De novo? Eu mal voltei a descansar…”, pensou enquanto lentamente abria os olhos.

— Eu finalmente consegui! É uma verdadeira obra de arte! — a voz de Ana transbordava de excitação juvenil, um contraste marcante com os séculos que pesavam sobre sua existência.

Gabriel, recuperando plenamente a consciência, observou ao redor, notando as montanhas de equipamentos ao seu redor, as quais haviam multiplicado o tamanho anterior, testemunhos tangíveis do tempo que ele havia passado em reclusão.

“Por quanto tempo eu dormi?”, em meio a pensamentos, seus olhos logo se fixaram nos dois objetos destacados sobre o balcão.

À direita, uma braçadeira de metal magnífica que estendia-se do ombro até os dedos, uma fusão de arte e funcionalidade. Era composta por centenas de minúsculas placas metálicas interligadas, permitindo um movimento fluido e natural, como se fosse uma segunda pele, mas com a promessa de proteção impenetrável. Cada placa era gravada com padrões intrincados, entrelaçando simbolismos antigos e designs contemporâneos que pareciam dançar à luz do fogo, criando uma narrativa visual que falava das eras que Ana havia transcendido.

Ao lado da armadura, repousava uma faca de aparência enganosamente simples. Seu cabo foi feito de um material escuro e robusto, possivelmente madeira petrificada ou algo semelhante, encaixando-se perfeitamente na palma da mão. A lâmina, por sua vez, era uma maravilha da metalurgia: apesar de sua simplicidade estética, o aço brilhava com um lustre incomum, refletindo um espectro de cores sutis que sugerem a complexidade de sua composição e o refinamento de seu forjamento. 

Gabriel a levantou com cuidado, a faca era excessivamente dura e afiada para ter sido criada por um ser humano. Ele sentia o peso do metal, a suavidade da lâmina sob seus dedos, e sabia, de alguma forma instintiva, que essa era mais do que apenas uma simples ferramenta. Era o início de algo, uma manifestação de tudo o que Ana havia aprendido e superado ao longo dos séculos.

— Eu pensei que houvesse um limite para um mundo tão humilde quanto a Terra, mas a tenacidade humana traz milagres…

 Surpreso com a intensidade da existência em suas mãos, Gabriel inclinou a lâmina recém-forjada em direção ao seu próprio dedo, testando a qualidade do aço com uma curiosidade quase científica. Seus olhos se alargaram momentaneamente, surpresos pela facilidade com que a lâmina cortou a pele divina, uma reação que transcendia sua compreensão habitual.

— Um presente para você, criadora obstinada — sussurrou com uma tonalidade de voz que misturava ironia e reverência, enquanto o sangue celeste escorria pelo metal. Inesperadamente, a faca não se manchou com o sangue de Gabriel; pelo contrário, ela o absorveu, adquirindo um brilho vermelho sutil, como se estivesse se alimentando da essência do anjo. — Agora, parte de mim reside na sua criação — finalizou ele sorrindo gentilmente, algo que contrastava com sua usual expressão irônica.

— O quê? Você tem ideia do quanto lutei para fazer isso? Nem ferrando que vai colocar sua marca em minha obra assim, sem mais nem menos! — A indignação fervia em sua voz enquanto arrancava a faca das mãos dele, seu olhar lançando faíscas. Gabriel, ainda mantendo seu sorriso provocador, observava a tempestade de emoções de Ana, reconhecendo no fundo a magnitude do elo que agora os unia através daquela arma singular.

— Bom, de qualquer forma não é como se eu tivesse qualquer uso pra ela — resmungou ela ao se acalmar, jogando a faca de forma descuidada de volta no balcão.


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