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Acordou com o sol brilhando forte mesmo através de suas pálpebras. 

Sua cabeça doía um tanto, talvez por todo o medo que sentira ao longo da noite. Ele nadou o quanto conseguiu e acabou parando em uma margem do Rio Arqueado. Teve que rastejar pela margem, para dentro da floresta novamente e desmaiou sob um antigo marco de pedra. 

A pilastra de pedra havia sido um encosto dolorido. Sua pele estava marcada e suas costelas que ficaram apoiadas doendo. O marco de pedra era um daqueles símbolos que ninguém sabia o porquê de estar ali ainda, mas muitos usavam como ponto de referência na viagem pelo rio. 

Jiten tinha uma ideia de onde estava, mas mal se lembrava de como chegar a ali. Tentava repassar as lembranças do combate na noite anterior e então, desceu os olhos para o calcanhar. 

Ainda tinha a corrente esquisita presa em sua perna. Foi só quando a olhou que começou a sentir novamente a dor do aperto que ela tinha. Com um pouco de paciência e muito mais dor, foi capaz de se desamarrar.

Observou aquela coisa. Era tão dura como uma corrente de elos de metal feita por um excelente ferreiro, mas era, na verdade, composta por um trançado de madeira e algum material tão negro que refletia praticamente nenhuma luz. Era como olhar para algo vazio. Uma sombra tão pura que a luz sequer a tocava. 

Era perturbador de pensar. 

Ergueu-se trazendo para o próprio corpo forças que derivavam de algum lugar muito dentro de si. A ausência total de escolha, talvez, fosse uma motivação para manter a objetividade de suas ações. Ele precisava chegar ao santuário. 

Os pássaros cantavam, animais corriam por entre os arbustos e sobre os galhos das árvores. Os sinais do outono estavam começando a se espalhar, como se derramasse tinta sobre a água e a visse dissolver. Tudo aos poucos ia mudando de cor. 

Sentia-se miserável enquanto uma certa tristeza começava a se apoderar de seu peito. Aquelas coisas que ele vira na noite anterior, pareciam perturbadoramente semelhantes ao que viu quando sua família foi assassinada. Da mesma forma como o fizera dez anos antes, ele também só pôde correr. 

Aquelas criaturas vitimaram os pastores e mataram talvez todo o rebanho que cuidaram durante anos. O que mais poderia ter acontecido na vila? E se tivessem invadido as muralhas e massacrado os cidadãos. Seria o Lorde Sanghun, com toda sua brutalidade contra os camponeses, ser capaz de deter criaturas como aquela?

Mesmo que esses questionamentos lhe viessem a mente agora, era tarde demais. Ele não correu para Bushimusuko. Correu para floresta. Fugiu das criaturas malignas exatamente como no passado. Assim como aconteceu naquela época, ele rumava para a cabana de Khanh e Bjarka. 

Se esconderia lá até Renji lhe dizer que estava pronto para voltar. Como foi no passado. 

Aquela repetição podia até ser confortável de compreender, mas era doloroso ter que aceitar que não passava de uma criança indefesa, mesmo que por tanto tempo tivesse treinado sob a tutela de um mestre. 

Não era digno de seu nome. 

Havia, no entanto, de dar a si algum sinal de condescendência. Não seria bem-vindo em Bushimusuko. Se lorde Sanghun não perecesse na luta contra aqueles monstros, decerto que Jiten acabaria uma hora ou outra capturado. Só de pensar em ter que passar pela tortura sob o poder de Nobu já lhe motivava a se agarrar ao plano que Renji lhe passara.

Nem mesmo entendia o motivo de ser caçado pelo próprio lorde. 

Apoiando-se nas árvores, levou muito mais tempo do que imaginava para conseguir alcançar a clareira onde estaria o santuário. Seguia com o plano. Era o que lhe restava. Não pensava tão bem sobre isso, uma vez que sua mente ainda tentava negar toda a complexidade do que vivera nos últimos dias. 

Chegou então nas ruínas. O santuário, na verdade, era um lugar abandonado. Ele havia sido algum tipo de monumento erigido pelo povo antigo, então, revitalizado por alguns dos moradores de Bushimusuko para servir de memorial secreto àqueles que morreram na invasão de Lorde Sanghun. 

O lugar era uma pequena colina. Monólitos estavam espalhados ao redor e sobre ela. A maioria deles corroídos pelas intempéries ou completamente tomados pela vegetação. Não era mais uma clareira há tempos. As árvores cresceram, a maioria jovem, avançando em direção à colina como monges itinerantes. 

Uma pequena escadaria havia sido esculpida circundando a colina. As pedras já estavam misturadas demais com terra e lama para permitir que alguém andasse facilmente pelos degraus. Jiten podia ver dali mais algumas pilastras de pedra no alto da colina, tal qual os monólitos tomadas por vegetação, mas ainda demonstrando sua semelhança com lanternas. No passado, cada uma das pilastras era acesa com um combustível que queimava uma chama colorida.

Em sua época, deveria ser belo. Agora, era só um esqueleto. Os sombrios restos mortais de uma civilização massacrada. 

Subiu as escadas, ainda mancava e por isso tomou um cuidado redobrado com qualquer tropeço. A subida era suave, mesmo que exigisse alguma força das pernas e lhe tivesse custado algumas exclamações de dor. 

A maioria da parte superior da colina era revestida de pedras e arbustos. As pedras cortadas em blocos haviam sido agrupadas em forma circular. Cada uma delas ilustrava símbolos em uma linguagem antiga, praticamente esquecida. Para a maioria, eram apenas glifos com símbolos mágicos incompreensíveis para pessoas normais. 

Jiten abrigou-se sob uma das pedras. Protegendo-se do sol. Podia ver alguns presentes colocados mais a frente, sobre um altar retangular de pedra lisa. Era um memorial para aqueles que morreram. 

Não soube quanto tempo ficou ali. Talvez, mais de duas horas. O sol mudou muito de posição, mas estava cansado mentalmente e só lhe restava ficar escondido. Em algum momento, chegou a dormir e acordar com um sobressalto. Sua mente atingida constantemente por um pesadelo que ele não conseguia se lembrar. 

— Jiten! — Ouviu uma voz chamá-lo. Era Chen. 

Saiu de detrás das pedras e de sobre a colina o viu abaixo. Trazia seu cavalo e estava vestido como um soldado. O manto vermelho de lorde Sanghun, a armadura de couro e metal, com a máscara bestial cobrindo a parte inferior do rosto. 

Por um momento, Jiten enxergou apenas um soldado do lorde. Assim, teve medo mais uma vez. Poderia ter caído em uma armadilha. Deveria ter se escondido melhor e, talvez, ocupado outra posição para esperar. No alto da colina estaria encurralado. E se tivessem sido traídos novamente?

Cansado. Teve de aceitar que já era tarde demais para pensar nessas coisas. 

— Aqui. 

Sua resposta criou em Chen um senso de urgência. O soldado amarrou o cavalo em uma das pedras e subiu agilmente os degraus do templo ancestral. Ele carregava nas mãos um embrulho que Jiten reconheceu. 

Quando Chen chegou finalmente no alto da colina, um silêncio se esgueirou entre os dois e permaneceu. O olhar dele ficou fixo em Jiten por uma boa porção de tempo, antes de ter coragem de falar. 

— É bom vê-lo vivo. Você testemunhou os ataques, então? — Chen disse e olhou ao redor deles, como quem suspeita da própria sombra. 

— É. Quase me mataram. — respondeu, admitindo que sua vida só fora salva por um capricho do destino. 

Chen assentiu com a cabeça. O rapaz estava agitado, sua cabeça se movia continuamente, não parecia querer ficar parado muito tempo. 

— O velho… Renji. Ele me disse que você precisa fugir. Que ofendeu o lorde e não pode mais voltar, é verdade isso? — Chen falou e seus olhos pareceram perigosos. 

Jiten hesitou.

— Olha, eu nem deveria estar aqui. Estou em patrulha por ordens do capitão. Há soldados por todas as redondezas. Eles querem achar os culpados por esses crimes. Não é uma boa hora para você estar por aí. — Chen disse, prolongando-se com um ar de conselho, mas algo em seus olhos parecia ameaçador. 

Jiten olhou ao redor, sentindo uma ameaça latente nas árvores. Chen era seu amigo desde a infância, mas mesmo ele parecia estar movido por uma determinação ímpar. Não sabia o que pensar daquela situação. 

Fora atacado por monstros. Isso não parecia fazer tanto sentido para ele. Não faria sentido para ninguém. 

— Eu não posso voltar agora — respondeu, sem poder dizer seus verdadeiros motivos. Não podia explicar que havia algo com uma descendência antiga que nunca mencionara. Mesmo ele não saberia explicar tão bem o porquê de ter que partir. Não era bem-vindo em Bushimusuko. — Vou ficar um tempo fora da vila. Depois retorno. É temporário. 

Teve que mentir. 

Chen franziu as sobrancelhas. 

— Não me parece uma boa ideia, nem partir, nem voltar. O velho não me disse o que você fez. 

— Algo a ver com uma ovelha pequena demais. 

— É esse o motivo?

— Há quem tenha morrido por menos. 

Chen assentiu. O jovem soldado abaixou a cabeça. Jiten não sabia o que se passava em seus pensamentos. Algum tipo de conflito entre o amigo e o dever, talvez. O certo seria que o prendesse, que o levasse de volta. 

— Acredito que o lorde te perdoaria. Com este ataque. A vila precisa de mais homens. Já se fala entre os soldados de marchar para Hoshigawa e Kinyuki. O lorde deseja vingança pelo rebanho perdido. 

Jiten assentiu com a cabeça, mas demorou um tanto mais para processar o que havia sido dito. Sentiu a dor flagelar seu tornozelo quando em sua inquietude tentou trocar o pé de apoio. Fez uma careta e negou com a cabeça. 

— Por que querem marchar contra eles? — Jiten questionou com uma visível incredulidade no rosto.

— Você estava lá, não? Foram os Hoshigawa que nos atacaram durante a noite. Flâmulas azuis foram encontradas onde lutaram com os pastores. Esta manhã capturaram batedores dos Kinyuki. — Chen disse com convecção suficiente. 

Jiten começou a duvidar de suas memórias. Do que havia em sua cabeça. Aqueles monstros, os draugos, criaturas saídas de lendas que assassinaram seus colegas sem qualquer piedade. Lembrou-se da criatura da floresta. 

Será que sua mente não era mais confiável? Estava enlouquecendo? Sonhando para fugir da realidade?

— Não, não, não, Chen. Não foi isso. 

— Como não? Há provas o suficiente. Seis meses atrás, Lorde Hoshigawa foi até a capital para pedir apoio do Imperador contra o Lorde Sanghun e foi humilhado. Sabiam que ele tentaria alguma coisa como vingança. O nosso lorde já estava se preparando para isso. 

Jiten sabia daquele ocorrido com o Lorde Hoshigawa. Sabia também que Sanghun e Kinyuki eram inimigos mortais após o primeiro matar os dois filhos mais velhos do segundo na guerra civil dez anos antes. Era uma ferida dolorosa naquele território. 

Mesmo assim, não parecia ter sido o que ocorreu. Aquelas criaturas macabras não portavam nem serviam nenhuma bandeira. A única coisa que as comandava era a morte. Isso era certeza para o jovem. 

— Você não disse que estava lá? — O silêncio de Jiten foi questionado por Chen. 

— Sim, mas… — Ocorreu-lhe que não deveria dizer nada. Foi o mesmo que aconteceu quando sua família morreu. As tropas estavam em todo o lugar, mas só ele foi visitado por aquelas monstruosidades. Sempre pensou que era um delírio infantil, mas agora revivia tudo. 

— Mas?

— Não pareciam soldados comuns. 

— Até porque não poderiam ser. Os homens do norte são diferentes de nós. Você nunca saiu de Bushimusuko. 

— Não. Nunca saí. 

— Nem deveria agora. Posso tentar apelar com o capitão por você. Você foi ferido, quase morto, defendendo o rebanho do lorde. Isso deve contar como redenção por uma ovelha mirrada. 

Jiten pensou se poderia confiar naquelas palavras de Chen. Não que o amigo o tentasse enganar. Ele mesmo parecia acreditar em tudo aquilo. Em alguma situação, quem sabe, ele poderia ter optado por retornar ao lar. 

Sim, seu lar. Bushimusuko era o lugar em que nasceu e cresceu. Mesmo que o Clã Sanghun fosse impiedoso e cruel, ainda era o único lugar ao qual pertencia. Contudo, tinha medo. 

Não se sentia aceito em lugar algum. 

A necessidade da decisão o deixou nervoso. Sentia o calor aumentando no pescoço e ao redor das orelhas. Quase perdia o fôlego. Sua mente repassou tudo o que havia acontecido nos últimos dias. Os draugos, os ataques e todas as mortes ocupavam sua mente, mas a tortura diante de Lorde Sanghun o lembrou de sua verdadeira posição.

Lembrou-se de estar de joelhos. Lembrou-se que caiu no chão de tanta dor. Renji lhe havia dito para sobreviver. A qualquer custo. Tinha que ficar vivo. Sob as botas de Lorde Sanghun, talvez, estivesse mais seguro no passado. Só que tudo mudou. 

Não podia voltar. Não sem entender o porquê de ter que partir.  

Ele confiava em seu mestre e ele lhe disse onde encontrar a resposta. Tinha que chegar até Khanh e Bjarka. 

— Renji não te pediu para entregar uma coisa? — Indagou ao amigo. 

Chen piscou os olhos duas vezes, dando-se conta do que havia em suas mãos. 

— Não vai ter volta se for embora. 

Jiten estendeu a mão e olhou no fundo dos olhos do amigo. Estava desconfortável. Era um momento delicado. Havia confronto em seus olhos azuis e relutância nos olhos grandes de Chen.

— Você é meu amigo. — Chen disse e seus dedos apertaram mais o embrulho. 

Jiten mantinha seu olhar nele e a mão estendida. Chen também tinha uma decisão a tomar e foi vê-lo dividido que tornou a posição de Jiten mais consolidada. 

— Chen, eu preciso ir. 

— Podemos dar um jeito. 

Jiten apegou-se a memória do Lorde quebrando o pescoço de sua oferenda. 

— Um lobo não perdoa uma ovelha. É assim que é, Chen — afirmou com uma certeza única. Uma compreensão que vinha de dentro. — Você, quem sabe, pode se tornar um lobo, com sua máscara e sua armadura. Eu sou só uma ovelha que cometeu um erro. — Jiten, então, deu dois doloridos passos para frente e colocou a mão sobre o ombro de Chen. — Mas eu não vou ser devorado. 

Chen estendeu o embrulho e deixou que Jiten o tirasse de suas mãos. 

— E o que vai fazer uma ovelha com uma espada? — O jovem soldado replicou.

— Vai descobrir a verdade.

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