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Um momento prolongado de silêncio se assentou entre os dois.

Jiten olhava para a mulher que sempre fora desprezada pelo vilarejo como uma bruxa e viu no rosto dela um terror que era parecido com o dele. Encontrar aquilo não o deixou aliviado. Na verdade, saber que tudo aquilo era mais que um sonho agora tornava tudo ainda mais perigoso. 

Tudo que viu, sempre esteve lá. 

Se virou para o lado de súbito e vomitou. Não havia muita coisa para vomitar, então tornou-se mais uma sessão de tosse. Olhou de soslaio para Bjarka e notou que ela agora parecia ainda mais preocupada. 

— Pode ser o veneno — afirmou a mulher e ela correu para sua mesa para preparar alguma mistura. 

Jiten não achava que fosse o veneno. Era que agora ele podia racionalizar o pavor que vivera. Esteve tão perto da morte que sentiu o cheiro pútrido daqueles que passaram por ela. Agarrou os cobertores com força, respirando fundo para tentar manter seu coração batendo. 

O coração batia tão rápido. Parecia que a qualquer momento explodiria dentro do peito. Ele não devia ter falado sobre aquelas coisas. Estava atrás de verdades, agora, era difícil lidar com ela. Aqueles monstros espalhados pela floresta podiam chegar até ele, pois eram reais como os cobertores que o cobriam. 

— O que aconteceu? Mãe? — Foi a voz de Wulan que ecoou por dentro da cabana. 

— O corpo dele precisa expelir o veneno. 

— Ele foi envenenado? — A garota exclamou. 

Antes que Jiten pudesse ver, ela já estava ajoelhada ao lado dele, examinando seu rosto e avaliando a temperatura de seu corpo com as costas da mão em sua testa.

— Está febril — murmurou Wulan, ela examinou o ferimento no braço esquerdo, tentando entender se as marcas deixadas ali estavam infectadas. — Não há pus. Foi picado por algum bicho?

— Ele vai ficar bem. — Bjarka respondeu com objetividade, seu corpo estava encolhido sobre a mesa e os braços se moviam rapidamente executando um trabalho minucioso. 

— Precisamos achar o ferimento. Para preparar um antídoto. Essa área está cada vez mais cheia de serpentes e…

— Wulan. Fique calma. Eu já inspecionei o corpo dele, não há picadas. 

Jiten sacudiu a cabeça, limpou a boca com as costas da mão e voltou a apoiar as costas no chão. Respirava fundo e devagar, quase como se estivesse se preparando para mais um combate. Não conseguia pedir ajuda, apenas lidar com aquilo por meio da única forma que conhecia.

— Eu ‘tô bem — afirmou Jiten olhando para Wulan, mas algo em sua expressão facial o denunciou. 

— Como ele foi envenenado, então? — Wulan se voltou para sua mãe, agora mais desconfiada da resposta. — Você está usando pó de ginsênia vermelha… Isso é? — A garota voltou os olhos para Jiten. — O que aconteceu com você, Jiten? 

— Wulan. Eu já disse que ele vai ficar bem. Renji ensinou o Shanguo a ele.

— E como isso ajuda? 

Jiten suspirou e segurou o antebraço de Wulan, era para ser um gesto de conforto. Ela se sentou ao lado dele em resposta ao movimento. 

— Ele se recupera mais rápido. O corpo não é frágil como o é o de um jovem comum. 

Renji já havia falado sobre aquilo. Apenas o treino do Shanguo já desenvolvia o corpo de forma que ele se fortalecesse, sem que nem mesmo fosse necessário ganhar uma massa muito maior de músculos. Então, mesmo um kumokai pequeno poderia assustar um homem comum com o dobro de seu tamanho. 

Jiten nunca soube se realmente aperfeiçoou isso ao nível que poderia resistir a um envenenamento ou a perda de muito sangue. Mesmo assim, já havia tido provas que aguentava muito mais do que um pastor de ovelhas comum. 

Mesmo assim, o Shanguo em nada mitigava a dor da recuperação, que parecia ainda mais intensa pelo ritmo acelerado em que seu corpo reparava seus ferimentos. Por isso, ainda, nessa fase, precisava de mais alimentos para se recuperar. Os venenos, como purgantes, sempre foram efetivos demais contra os kumokais porque ampliavam sua debilidade após ferimentos. Contudo, os mugenjin raramente aplicavam venenos em combate. 

Bjarka terminou finalmente a mistura que fizera e veio até Jiten. A mulher o fez beber um líquido semi-viscoso com uma cor avermelhada. Havia grúmulos suspensos nele que o tornavam especialmente repulsivo de engolir. A substância tinha um gosto adstringente muito forte que quase fez o rapaz vomitar novamente. 

— A ginsênia vermelha vai deixar você tonto, então é melhor não tentar se levantar de novo. Ela vai fazer você suar o veneno, então seu corpo vai esquentar ainda mais e vai ser doloroso. 

— Por que vai dar isso para ele? Vão me esconder isso? — Wulan indagou mais uma vez à sua mãe. 

Jiten ficou alguns segundos com uma careta impressa no rosto. Notou que Bjarka ignorou a pergunta da filha e isso o deixava um tanto mais tenso. Quando disse à Bjarka o que acontecera, soube que haviam selado um pacto silencioso. 

— Isso deveria ser importante? — Jiten disse, com um sorriso um tanto torto, já que falar fez o sabor horrível da poção ressurgir na boca com mais intensidade. 

— É importante. — A voz veio do fundo da cabana. Era uma voz mais grossa, masculina e Jiten a reconheceu como sendo pertencente a Khanh. Há quanto tempo ele estava ali? — Ginsênia vermelha é uma raiz que purga o mal espiritual em troca de sentir a dor de quem sangrou para obtê-la. Essa raiz só surge perto de campos de batalha — explicou Khanh, sua voz transmitia um tanto de melancolia, mas ele parecia muito ciente do que acontecia. — Wulan, se sua mãe não quer falar, deixe-a. 

Jiten sentiu que não estava sendo justo. Fora um erro falar sobre o que aconteceu com Bjarka, sim, mas agora ele a havia prendido. Ela estava acorrentada à ele e não podia dizer a verdade para sua própria filha. 

O rapaz acompanhou aquela família por anos suficientes para saber como aquilo era uma violação para as duas. Bjarka não era só mãe, mas mentora de Wulan e as duas tinham uma relação de confiança que Jiten nunca vira entre qualquer pessoa. Era mais intenso do que sua conexão com seu próprio mestre. 

Era melhor que já soubessem. Afinal, viviam naquela floresta e ele viveria ali, por um bom tempo também. 

Deu um suspiro longo e abriu a boca.

— Aru… Arukage — o garoto falou com um murmúrio que saiu quase sofrido. A dor já havia começado. 

Naquele momento ouviu um xingamento vindo do fundo da cabana em alguma língua desconhecida. Khanh se levantou de súbito e fechou a porta com força, olhando atemorizado para fora. Bjarka também reagiu alarmada. Ela tampou a boca de Jiten com tanta força que machucou seus lábios e olhou com terror para ele. 

— Não fale esse nome na minha casa! — Khanh exclamou, seu rosto estava distorto de fúria. Ele fechava as janelas com força, murmurando alguma coisa na língua de seus ancestrais. 

Jiten ficou aterrorizado pela reação deles. Havia feito alguma besteira e sequer entendera. Sua expressão facial era compartilhada com Wulan, que também não entendia o que havia acontecido. 

— Você não me falou disso, Jiten. Falou dos mortos, não foi? Não era isso? 

— Mortos? — Wulan começou a indagar, também sobressaltada, mas um gesto de mão da mãe a aquietou.

— Não repita o nome. Ouviu, bem? Não diga o nome dessas coisas aqui. — Bjarka sussurrou e mesmo com a voz baixa foi possível captar a severidade com a qual dizia aquilo. 

Ela liberou a pressão sobre a boca dele e o rapaz comprimiu as pálpebras. 

— Havia os mortos. Eles atacaram nosso acampamento na colina. Mataram todos os meus companheiros. Então, havia a outra coisa… não era como os outros. Ele me perseguiu por dentro da floresta, me joguei no rio para fugir. — Jiten explicou com algum grau de dificuldade. 

Bjarka se levantou e olhou para o marido. Os dois tiveram algum diálogo silencioso que seria imperscrutável para o rapaz. Apenas os olhares já diziam muitas coisas e Bjarka começou a caminhar de volta para a bancada madeira com seus ingredientes. 

— Ele o seguiu para além do rio? — Khanh questionou, agora muito mais concentrado do que furioso. 

— Sim. 

— Até onde? 

Jiten hesitou por um momento. Ele se lembrava do Cedro Celeste e do estado em que chegou aos seus pés. Lembrava-se dos vaga-lumes e das palavras misteriosas. Seu corpo quase revivia as sensações que tinha ali, aquela familiaridade, mesclada com um sentimento de tranquilidade. 

Mesmo assim, já havia falado coisas demais para eles. Falar sobre aquela criatura já fora muito mais do que ele gostaria de ter que revelar. Bjarka e Khanh já sabiam do Cedro e de seu poder, mas Jiten temeu por lhes revelar que o encontrara novamente. Se reagiram daquela maneira com uma palavra, se mencionasse a entidade sagrada poderia gerar alguma reação pior. 

— Não lembro. 

— Não? Essas coisas não deixam homens fugirem. — Khanh o pressionou com um tom desconfiado. 

A cabana havia ficado bem mais escura desde que o homem fechara todas as entradas. Ali, os ossos de animais pendurados no pescoço dele eram tão brancos que quase brilhavam e a vegetação que lhe servia de gibão parecia torná-lo ainda maior quando aliada com as sombras. 

— Lutamos, mas ele só continuava vindo. Então eu corri e não lembro mais o que aconteceu depois. 

O casal se entreolhou novamente. Jiten via aquilo como um sinal ruim. Ficou um tanto mais nervoso. O coração quis acelerar mais uma vez e ele tentou se manter no controle respirando. Seu estômago estava se revirando, mas não sentia mais vontade de vomitar. Podia sentir uma dor leve se propagando pelo corpo a partir do centro de seu torso. 

— É um milagre estar vivo. — afirmou o homem. 

— Por quê? — Jiten retrucou, mais porque toda aquela conversa o deixava ainda mais nervoso. Já era estranho ter se deparado com tantas coisas fora da natureza, agora, ainda havia aquele mistério que não conhecia. 

— Quando é inverno, por vezes um morto pode voltar, movido por alguma convicção maligna. Eles causam medo, roubam ou matam, depende do que eram quando em vida. É só lenda para a maioria, mas ocasionalmente, alguém os vê e isso nunca é bom. 

— E a outra coisa, então? 

— Tem certeza do que viu? Não era apenas como os outros mortos? 

Jiten piscou os olhos e soltou o ar pela boca. 

Khanh havia sido muito mais incisivo quanto aquelas criaturas do que Bjarka. Ele parecia ter uma convicção de que tudo aquilo era verdade, muito menos cauteloso acerca das coisas e mais realista. Ele havia fechado as portas e janelas não por desespero, mas com a consciência de que era o certo a fazer. Esconder-se era um ato realista para ele. 

— Tudo isso parece uma lenda, uma história, não…

— Aqui não é o vilarejo, Jiten. — Khanh o interrompeu prontamente, aproximou-se do rapaz, ficando ainda maior. Um feixe de luz iluminou seu rosto. Estava sério, mas nos olhos havia compreensão contida no brilho que emanavam. — Eles desprezam os espíritos como entidades presentes nesta terra. Parece-lhes lendas que tais seres existam, mas para eles é temível e verdadeiro que homens possam manipular as leis da natureza. 

— Os filósofos. 

— Sim. Renji nos contou que esteve de frente para um deles. 

Jiten sentiu seu corpo estremecer. 

— Eu sei o que dizem sobre nós. O tal Povo Antigo. A maior parte do que acreditam está deturpado pelo tempo ou é invenção pura e simples, — disse Khanh, seus ombros encolhidos, como se guardasse no centro do peito alguma coisa. Talvez, mágoa. Talvez, outra coisa mais sombria — mas é verdade que temos superstições. Um povo precisa de superstição. Precisa de histórias para serem contadas na beira da cama de crianças. — continuou, aproximando-se mais. — Esta, Jiten, não é uma dessas histórias. 

— Está bem — o rapaz assentiu.

— Nós não dizemos o nome. Meu povo os chamava de errantes sombrios. Quem te contou o nome dessa coisa?

Jiten olhou para Bjarka e para Wulan por um instante antes de falar. 

— Renji. — Apenas conseguiu mentir. 

Bjarka bateu com um pistilo na bancada. 

— Tinha que ser aquele mugenjin. Esse povo não tem respeito. Dizendo o nome dessa coisa a torto e a direito, para uma criança repetir. 

Khanh ergueu a mão, o gesto pedia parcimônia. 

— E como ela se parecia? 

— Mais rápida. Mais forte. Não era como os mortos. Era… — Jiten sentiu uma pontada de dor em seu peito do lado direito. Trincou os dentes por um momento e continuou. — Era como se fosse feita de sombra e madeira, não carne podre. Tão escuro que não podia ver nada além de uma silhueta que imitava um homem, mas como se tivesse sido moldado por uma criança ou não sei. Tinha espadas retorcidas no corpo e…

— Havia uma máscara?  

— Não. Apenas o sorriso. Ele sorria o tempo todo, tinha muitos dentes e dizia que conseguia me ver… Ele ficava repetindo isso. — Jiten começou a sentir o coração disparar mais uma vez. 

Novamente aquele medo que vinha do nada. Estava com muito calor. A pele estava coçando na lateral do pescoço e ele tentou aliviar a coceira com a mão, mas ela o obedecia menos do que o normal, estava quase dormente. Mesmo assim, sentiu na ponta dos dedos alguma coisa. 

Era um cordão amarrado no pescoço? 

Deixou aquilo para lá por hora. A voz de Khanh o chamou de volta para aquela cabana e para longe das memórias da perseguição.

— Isso que você me descreveu. Não costuma deixar ninguém vivo. Essas coisas perseguem e matam. O fato de não ter a máscara explica porque estamos vivos. 

— O quê? Ele o caçaria mesmo aqui? — Wulan perguntou, alarmada, com os olhos pulando entre seu pai e sua mãe. 

— Acalme-se. Se essa coisa pudesse entrar nos limites que sua mãe ergueu, já o teria feito. 

— Ai. Eu trouxe ele para cá. Podíamos ter morrido todos. Por que você não falou nada, idiota? — Wulan deu um chute na perna de Jiten. Os cobertores amenizaram a dor.

O rapaz respondeu com um olhar de incredulidade. 

— Não é culpa sua… Nem dele. — Khanh respirou fundo e se voltou novamente para Jiten. — Renji te mandou aqui para te proteger do lorde. Não podia esperar que houvesse um errante na floresta.  

— Será que não? Sanghun encheu a floresta de cadáveres, arrancou centenas e centenas de árvores pela raiz. — Bjarka cuspiu as palavras com desprezo. — Essas coisas sentem a guerra que ele está armando e querem estar por perto, não é assim na lenda? 

Khanh assentiu. 

— Vamos deixar o garoto descansar. Ele precisa de uma refeição e então dormirá. Se esse veneno vier mesmo daquela coisa, então, será doloroso demais para deixá-lo acordado. — O homem disse com serenidade, mas havia algo escondido em seu tom de voz. Ele colocou a mão sobre o ombro de Wulan para guiá-la para fora.

— Renji me disse que vocês tinham coisas para explicar. — O jovem murmurou. 

Bjarka sorriu. Era um sorriso um tanto que soturno. 

— Acho que já foi o bastante por hoje. Quando melhorar, você vai saber. 

Jiten acabou por aceitar o silêncio. Assentiu com a cabeça. 

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