Alguns minutos antes…
Faz quarenta minutos desde que Amiah deixou Theo sozinho na floresta. Caminhando agora por um ambiente íngreme e úmido, Theo tenta se equilibrar para não despencar no riacho abaixo. Cuidadosamente, ele desce os degraus naturais feitos pelas pedras de musgos. Ao chegar no leito, Theo agacha e se posiciona para agir. Vigiando uma ave no outro lado do riacho, Theo coloca um dos pés sobre uma pedra.
“Assim que eu encostar a outra perna na pedra, vou usar o vento para me lançar contra o pássaro. O resto é improviso.” pensou Theo, antes de realizar o movimento.
Com o pé direito como ponto de apoio, ele solta a perna esquerda do solo e pousa sobre uma pedra. No mesmo segundo, Theo usa o vento para se impulsionar contra a ave. Se deslocando a sessenta quilômetros por hora, ele se arrependeu no instante em que observou o animal melhor.
Como estava em um buraco, Theo conseguia ver apenas a cabeça e um pouco das asas. Mas tudo dependia do ângulo. A ave em questão, tem quase três metros de comprimento. Uma ave fabulosa, com cabeça, bico e asas de gavião e o corpo de leão. O animal gigantesco escuta o estrondo do vento e sente o movimento brusco de Theo.
Em alerta, a ave se prepara para fugir antes que seu predador chegue, mas, antes de qualquer ação, Theo pula em direção ao animal usando uma adaga. Voando para cima, o animal joga Theo contra o chão, deixando-o sem oportunidades para fugir.
— Um grifo… — murmurou Theo, com um soluço escapando da sua boca.
O berro do grifo inunda os ouvidos de Theo, deixando-o desnorteado. Mergulhando no ar, a besta mítica avança contra o garoto. Para se defender, Theo cria um vórtice na palma da mão e explode o feitiço, se lançando assim, para o lado oposto ao riacho.
Deslizando na terra, Theo se ergue e corre para dentro da floresta. Criando discos de vento densificados, ele os joga contra o grifo enquanto tenta ganhar tempo para fugir. Correndo, Theo esbarra em uma árvore no caminho. Mesmo que o sol ainda estivesse se pondo, as árvores de quase sete metros da floresta impediam a passagem da luz solar.
“Eu sou de grau um, já essa besta… Sequer tem grau para descrever a força.” analisou enquanto corria. “Se tem a cabeça de um gavião, então ela tem visão noturna…!” O grifo dá uma investida, batendo de cara numa árvore e parando por alguns segundos antes de voar. “Droga! Essa é a zona mitológica!”
Pegando um azulejo no chão, Theo usa um impulso de vento para atirá-lo contra o grifo. Em seguida, ele lança outra pedra para o lado, fazendo-a girar 180 graus no ar. A pedra atinge a cabeça do grifo, irritando-o ao máximo.
Saltando por uma rachadura no chão, Theo pisa em falso e quase cai no buraco. Por pouco, mas não por sorte, pois o grifo agarrou-o pelo braço direito e o levou para cima das árvores.
Pegando a adaga novamente, Theo tenta cortar a garganta do animal, e consegue, fazendo o sangue escorrer. Foi o que Theo imaginou. Na verdade, a lâmina da adaga se quebrou assim que tocou na pele da besta.
Visando acabar com a presa, o grifo mergulha nos galhos, quase rastejando pelo chão. Ele joga Theo para longe e para em uma pedra. Soltando um berro, a besta olha para a lua. Enquanto o animal realizava algum rito, Theo olhou o ambiente e percebeu um penhasco logo atrás dele.
Revezando o olhar entre o grifo e o penhasco, ele se arrastou com o braço esquerdo até a beira. Chegando na beira, ele sequer olhou para o animal antes de tomar a decisão final.
Theo se joga no abismo do penhasco.
O calor infernal o acordou. Tocando sua testa, ele percebe que está maior, cerca de trinta centímetros. Seu corpo também está mais amadurecido, como o de um adulto, com músculos definidos e veias transparecendo sob a pele.
Olhando para frente, ele vê um enorme rio agitado, então decide ir até o leito, visando olhar seu reflexo e, para seu espanto, lá está ele: o soldado que se foi há quinze anos, com cabelos loiros e olhos azuis: Liam Mason.
O espanto e confusão de Liam não durou muito, já que uma voz rouca o interceptou.
— Você — chamou por Liam. — suba — ordenou. Mesmo tendo inúmeras pessoas translúcidas em um pequeno pedaço de terra, Liam percebeu estarem falando com ele.
Correndo os olhos pelo lugar, Liam encontra um barco de madeira no leito do rio, onde um senhor de túnica branca e suja o esperava. Engoliu em seco antes de dar um passo em direção ao barco. Incomodado com os olhares alheios, Liam desvia o olhar para o rio e nota como se fossem rostos e mãos agonizando nas ondas.
Subindo no barco, o senhor pede:
— Pagamento.
— Pagamento? Como assim?
O barqueiro lhe encarou por instantes. Notando a diferença entre Liam e os demais presentes, percebe que o corpo de Liam estava “físico”.
— Entendo.
Subindo na proa, o barqueiro começa a remar em direção a uma cachoeira que despenca para o nada. Enquanto navegam, Liam não consegue tirar os olhos daquelas ondas. Pareciam almas agonizando após a morte, pagando pelos pecados.
Ultrapassando os limites da cachoeira, o barco começa a flutuar por um abismo. O abismo abaixo, logo se transformou no absoluto universo. Como se eles estivessem viajando em cima das próprias estrelas, galáxias. A atmosfera era inexistente, mas Liam não conseguia descrever a pureza que emanava de todos os lados.
Ele já conhecia aquilo. Uma energia tão pura e clara, responsável pela criação do universo: o éter. Difere da que tem em seu núcleo, é mais densa, mais poderosa e superior em todos os aspectos, chegando a fazê-lo quase ser sufocado. Um sentimento tão bom que acalma o coração e esvazia a mente. Como se um mar cheio de ondas e tsunamis, se tornasse um mar sem nenhuma onda, um mar calmo.
— Então, quem és tu? — indagou o barqueiro.
— Theo… Liam Mason.
— Não sabes quem és?
— Mais ou menos.
— Sua alma, ela já esteve aqui antes. Me diga Liam, já morreste?
— Como assim?
— Por algum motivo, o mundo inferior reconhece você como uma alma, e não como um mortal que veio aqui ainda em vida. Então suponho que seja um mortal que conseguiu o feito de transferir sua alma para outro corpo antes da morte. O que os humanos chamam de reencarnação.
Os olhos de Liam ficam entreabertos.
— Quem é você? — indagou Liam.
— Não te preocupes. Você não é o primeiro e único, jamais será também o último. Mas, respondendo: sou Caronte, o barqueiro de Hades.
“Caronte? Camille contou sobre ele…” pensou, e, ao processar tudo, Liam entende. — Esse é o Tártaro?
— Processou rápido. Sim, este é o mundo dos mortos.
Liam olha para trás, procurando o rio. Seus olhos se perdem no caminho, vislumbrando as estrelas e o mar infinito ao seu redor. A cachoeira estava lá, distante dele, o suficiente para ver o Tártaro como um mundo plano. Um disco flutuante no meio do universo.
— Esta é uma zona espiritual. Estamos no universo, mas, qualquer ser vivo sequer pode nos ver. Entendo… Meu senhor deve achar que sua existência ainda é necessária, já que não enviou Thanatos a sua busca. — Caronte fixou o olhar para o universo enquanto falava, como se estivesse observando alguma coisa.
— Como assim?
— Sendo o barqueiro do submundo, ao vir para essa região, eu consigo ver a vida de todas as almas. Geralmente faço isso com seres que me intrigam, igual a você. Um reencarnado, né? Como chegou até aqui?
— Eu me joguei de um penhasco para fugir de um grifo. Depois disso não sei de nada.
— Hum… Você desmaiou em uma zona de néter. Como sua reencarnação não passou pelo julgamento divino, o acúmulo de energia lhe trouxe até aqui. Mas há algo que me intriga… — Caronte para de remar. Virando para Liam, ele indaga: — Como você morreu? Não consigo ver certas partes da sua vida…
— Eu não sei. Na verdade, me lembro de pouca coisa sobre minha vida anterior. Somente quem eu era. Com o passar dos anos minha memória foi se apagando…
— Isso é bom — disse Caronte. — Significa que, quando você completar a idade que tinha antes, vai perder as memórias relacionadas a Liam Mason. Isso, sim, seria uma segunda chance…
“A energia que ele emana… Você não deveria ser um humano.”
— Isso não é ruim. Significa que não estarei preso nas correntes do destino.
— Em certa parte, sim. Porém, é tão ruim ser quem realmente é?
— A desculpa de ser um general assassino conta?
— Para mim não faz sentido. Vida, destino e morte são conceitos irrelevantes para mim. Então não tenho lições de moral para isso, sequer opiniões tenho. Agora, me diga, por acaso você morreu com um carma negativo por inveja? — indagou Caronte.
— Carma de inveja? — Pondo a mão em seu maxilar, Liam reflete.
— Sim. Por algum acaso, você morreu carregando o peso da inveja em suas costas?
— Inveja… — Continua a refletir, buscando memórias para uma resposta.
— Já fez coisas ruins pela inveja?
Enquanto ainda refletia, Liam sentou-se no fundo do barco e colocou sua mão no vazio do universo, onde ondas como as de um lago quieto começam a se formar seguindo seus dedos. Respirou fundo antes de responder:
— Sim. Eu sempre tive inveja de quem tinha uma família normal e feliz, das crianças que não foram forçadas a se tornarem soldados desde os quatro anos. Dos humanos comuns que não eram chamados de amaldiçoados. Eu tinha inveja das pessoas que mesmo com tudo de ruim que estava acontecendo, conseguiam rir. Confesso que muitas vezes agi pela inveja, mas nunca me arrependi…
— Sei… agora é compreensível sua reencarnação.
“Sua expressão é pura e suas falas são genuínas… Ele não gaguejou em nenhum momento, então conta a verdade. Sem contar que a atmosfera que ele estabeleceu não é muito diferente da sensação que o éter ao nosso redor passa. Liam Mason ou como se chama agora, Theo Lawrence… Você é muito mais do que pensa ser, não é?” analisou Caronte.
— Ei, ei? — Liam acena para Caronte.
— Ah, sim, desculpe-me por tomar demais do seu tempo. Meu trabalho também tem que ir para frente, então… Alvheim.
— Alv… o quê?
— Lembre-se de juntar um bom carma, segundas chances não virão assim sempre que morrer. Certifique-se de não se arrepender das suas atitudes, mas viva como quiser. Esperarei ansiosamente para o dia em que nos veremos novamente e claro, o dia em que te levarei pessoalmente até os campos Elísios, Senhor do… — Caronte fala um idioma incompreensível.
— O quê? Espere! O que você…!
O tempo paralisa quando Caronte empurra Liam para fora do barco. Apenas os lábios do barqueiro se mexiam, falando uma única palavra: “Destino.”
Sendo afundado em uma quantidade absurda de éter puro, os pensamentos do ex-general se tornam confusos, vendo coisas que nunca chegou a ver. Em um instante, ele começa a afundar como se estivesse em um oceano profundo, onde nem mesmo a luz o alcança. De olhos fechados ou abertos, nada muda. Até que finalmente, ele sente o chão.
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Uma correnteza bate constantemente no rosto de Theo, quase afogando-o. Com o corpo dolorido, ele não consegue fazer nada além de encostar o queixo no chão e beber um pouco da água corrente.
— Olha só, a princesa bebe água natural e suja — disse Amiah, sentado em uma pedra logo ao lado de Theo. — Dois minutos apagado… se tivesse demorado mais, eu pensaria em me preocupar.
Virando o corpo de lado, Theo tem em vista olhar seu mentor. Ao se encontrarem, o garoto aponta o dedo do meio para Amiah. Indo até discípulo, Amiah puxa o dedo para trás, quase quebrando-o. O rapaz agoniza pela dor e cansaço, mas logo volta ao normal.
— Vamos, loirinho. Você ainda tem muito o que fazer.
— Onde você estava? — indagou Theo.
— Com você. Nunca sai de perto. Por exemplo, quando o grifo bateu de cara numa árvore, fui eu quem o empurrei para lá.
Theo ficou em silêncio.
Se levantando, ele tenta olhar o lugar. Acima, apenas a fenda na qual ele caiu. Aos lados, rochas e mais rochas, porém, na direita, havia uma pequena caverna que se finaliza onde seus olhos ainda enxergam. Em uma formação de rochas, um brilho carmesim cintila nos olhos de Theo.
— O que é aquilo? — Apontou para uma rocha que emitiu o brilho.
— Aquilo é… — Amiah procurou pelo objeto. — Ah, tá. É um cristal arcano de néter. Não chegue perto demais, pode invocar um diabrete ou consumir todo o seu éter.
— Ah… — resmungou, como se sua mente tivesse explodido.
— Vamos indo. Vai ser um pouco complicado sair daqui — disse Amiah, tentando seguir a correnteza do pequeno riacho.