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Inevitavelmente, ninguém pode ser bom o tempo todo, assim como também é impossível ser racional o tempo inteiro. Todo homem tem uma máxima que permeia todos os cantos de sua vida, guiando-o desde sua vida amorosa até outras partes do que o forma. Uma máxima inegável: “este mundo definitivamente não foi feito para pessoas boas, pelo menos não para aqueles que se esforçam em ser o tempo todo”. O cerne da questão era de que ser bom, onde apenas poucos indivíduos a praticavam, não traria benefício algum. A reciprocidade diz que devemos tentar retribuir, de igual maneira, o que outra pessoa nos concedeu.

Heitor massageou a testa com uma expressão de desgosto. A pergunta fixa que circulava em sua mente era: “Qual seria a mesma moeda para o que o tenente me fez?” As palavras do tenente ainda estavam frescas no ar, gordurosas, pingando, chiando como se fossem uma fatia de carne recém-tirada da frigideira.

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Naquele dia, o tenente tinha acompanhado Norman de longe e viu ele entrando na biblioteca, um prédio cinza. Ao atravessar a rua, parou ao lado de um poste de luz. À sua direita, havia um beco, as costas de um restaurante, onde era óbvio que haveria pessoas revirando o lixo. No beco, cerca de seis homens arrastavam uma garota de 8 a 13 anos, uma miúda de canelas finas e roupa suja como todo o corpo.

Winston, beliscava-se constantemente no antebraço para se manter focado e menos ansioso sem o cigarro, interrompeu, dizendo que a versão estava muito diferente da que tinham ouvido antes. Heitor não se virou para responder; na verdade, fechou os olhos tentando ter uma melhor visualização do que o tenente estava falando.

O tenente, virou a cabeça para os lados com violência, como se tivesse levando vários  tapas, parecia uma fera tentando resistir a ser enjaulada, mas sua boca se movia por vontade própria.

Na versão dos fatos de Dave, no beco,  um dos homens, grande, notou sua presença e apontou com uma machadinha, mandando-o vazar. O grito de ordem assustou a meninazinha mais ainda, iniciou um choro mais alto, ela puxava os pulsos  com força, mas as mãos dos homens a apertavam, sacudindo-a como um saco de roupas sujas.

O tenente levantou as mãos para o alto e tentou acalmá-los, dizendo:

—  Calma senhores, não estou aqui para atrapalhar os seus serviços. Estou aqui apenas para ter uma conversa, o que me dizem? Vocês não perdem nada se apenas me ouvir certo?

Um dos homens riu como uma hiena, com uma barba queimada e um fedor insuportável, desviou o olhar e falou para um homem de rosto esquelético, mandando-lhe:

— Dá para fazer essa puta calar a boca? Não tá vendo que temos visita?

Em resposta, o homem de rosto esquelético apertou o pulso da menina com força, jogando-a no chão e chutando-a, evitando o rosto. Isso revelou a verdadeira natureza daqueles homens. Não que já não fosse óbvio, mas essa atitude deixou claro seu tipo de negócio. A menina, embora suja e maltratada, possuía uma beleza regular. Se tomasse um banho, poderia facilmente ser vendida por um bom preço. Ficou evidente que aquelas pessoas eram mercadores de escravos, tratando vidas humanas como simples mercadorias.

— Finalmente um pouco de sossego — o homem de barba ruiva disse, enquanto virava o rosto novamente para Dave. Agora, naquele lugar, o único barulho eram os guinchados de ratos passando de uma lado para o outro dos sacos de lixo.

Dave continuou, com um tom mecânico, sem vida. Ele lembrou-se de se apressar para falar sua proposta, perguntando quanto eles conseguiriam pela menina, talvez uma única moeda de ouro, que, dividida entre seis pessoas, seria muito pouco. Eles não puderam negar a lógica, mas responderam com raiva, perguntando o que ele queria.

Os seis bandidos se aproximaram mais do tenente…  Então,encarando nos olhos para o que parecia ser o chefe deles, falou Dave: 

— Imagine se existisse a possibilidade de ficar rico do dia para a noite? Não seria ótimo? Antes que me perguntem “como?”, deixem-me antecipar e explicar: daqui a alguns minutos, um garoto vai sair daquele local — disse Dave, apontando para a biblioteca. — Ele é filho de um aristocrata muito rico. Se vocês conseguirem sequestrá-lo, poderão exigir um resgate altíssimo dos pais dele. É uma oportunidade de ouro, e vocês não têm nada a perder. Evidente que nem tudo é tão simples. Eu não me importo de não ganhar nada com isso, mas, em troca, eu gostaria de ficar com essa garota para mim.

Os homens se entreolharam com expressões de desconfiança e interesse. Um deles, maior que os outros, com um corpo semelhante ao de uma montanha, saiu de entre eles e parou em frente a Dave, encarando-o de cima para baixo. Sem aviso, ele socou com força a barriga de Dave, que se curvou de dor, ofegante.

— Você acha que somos idiotas? — gritou impaciente. — É isso? Se realmente você tem uma oportunidade de ficar rico, por que você mesmo não faz isso?

Dave, ainda se recuperando do golpe, respondeu com dificuldade:

— Eu não estou obrigando vocês a nada, apenas propondo uma troca de mercadorias. Para falar a verdade, meu senhor prefere meninas como essa do que meninos. O garoto pode ser rico, e seria satisfatório para o meu senhor humilhá-lo, mas nada é melhor para ele do que uma  bucetinha virgem… — Dave tossiu mais uma vez, achando que já tinha se recuperado do golpe, mas ainda puxando o ar com dificuldade.

Os bandidos trocaram olhares. Alguns pareciam intrigados, outros ainda desconfiados. O homem corpulento que o havia socado estreitou os olhos, avaliando a sinceridade de Dave. Um dos bandidos, um sujeito com cicatrizes no rosto, deu um passo à frente e disse:

— Isso pode ser um truque. Como sabemos que você não está tentando nos enganar?

Outro bandido, menor e mais ágil,um rapaz de barba horrenda,  olhou para a menina e depois para Dave, e murmurou:

— Talvez ele esteja desesperado. Precisa conseguir uma garota que sacie o desejo de sexo do seu senhor. Eu vejo como uma troca injusta, queremos nossa parte pela garota, nós a achamos primeiro.

O líder, ainda encarando Dave, fez um sinal para os outros se acalmarem e falou em um tom mais controlado:

— Se isso for verdade, é melhor que não estejamos perdendo tempo. — Ele guardou a faca no coldre atrás da calça. — Mas quero que pague o devido preço da garotinha.

Heitor bateu uma palma, e imediatamente o tenente parou de falar. Heitor abriu devagar os olhos e pegou o copo sobre a mesa, onde também estavam os cadernos com as anotações das perguntas da sessão.

— Primeiro de tudo. Quem é esse senhor?

Com voz robótica, Dave respondeu:

— Não há qualquer senhor que eu sirva que tenha preferência por garotinhas em decorrência de garotinhos.

— Não foi isso que eu perguntei. Eu perguntei a quem você serve?

Houve um longo silêncio, pesado e tenso. Winston, já aborrecido, explodiu em voz alta:

— Fale logo, porra. Para quem você nos traiu?

O silêncio voltou a dominar a sala,veio sobre a sala como uma visita indesejada, pousando sobre todos como uma libélula sobre a superfície de um líquido. Todos os olhares estavam fixos em Dave, aguardando ansiosamente uma resposta.

Porém, depois de um tempo, parecia que realmente ele não podia falar. Winston insistiu, mas de novo nenhuma resposta.

— Não adianta… — murmurou para si mesmo o Corbeau, tamborilando os dedos no braço da poltrona. — Existem tipos de memórias que são implantadas na mente das pessoas. Podemos colocar cadeados em certas lembranças, funciona da mesma maneira que um trauma.  Podemos fazer as pessoas simplesmente não pensarem sobre o que não queremos que elas pensem. Dave não estava mentindo quando nos contou a sua versão, apenas não tinha conhecimento da verdade. Mas algo me intriga nisso tudo, se ele agisse assim o tempo inteiro provavelmente já teria sido pego. O que isso significa que não pode ser apenas uma simples lavagem cerebral,tem que ter algo a mais…

“Vamos lá, o que estou deixando passar? Como ele poderia enviar e receber informações? Como entra e sai do seu estado de transe? Poderia haver outro infiltrado? Não, se houvesse estaríamos apenas regredindo a pergunta, pois mesmo que alguém o colocasse e tirasse desse estado hipnótico, precisaríamos de outra pessoa para colocar esse aliado em transe. Como eu disse, apenas estaríamos regredindo a pergunta. Deve haver um primeiro motor… Pense, Heitor. O que Giliard faria no meu lugar? Ele diria que o essencial é nunca pular etapas. Onde tudo começou? Vejamos, na capital. Se o tenente esteve conosco desde o início, qual o sentido de nos deixar escapar da capital? Estávamos completamente cercados.”

Heitor levantou-se da cadeira, caminhando em direção a aquela parede com uma pintura. Seus olhos varreram toda ela. Ele voltou-se e encarou o copo repleto de água sobre a mesa, sentindo-se um pouco exausto até mesmo parecia carregado de uma frustração nos passos devagar.

— Se o tenente já tinha passado essas informações para seus superiores, por que não acabar com tudo ali mesmo? — murmurou para si, sua voz ecoando no silêncio da sala. — Dar esperança? Que absurdo.

Winston apenas encarou, sem comentar nada. Não queria interromper qualquer que fosse o que seu mestre estivesse pensando.

Ele pegou o copo de água, observando as pequenas ondulações na superfície, e tomou um gole, tentando clarear os pensamentos. A sensação fria da água deslizando pela garganta parecia trazer uma breve lucidez. Colocou o copo de volta na mesa com um som oco, e continuou a refletir.

— Por que apenas trocar os guardas corruptos do portão? — Heitor franziu a testa, a sensação de estar montando um quebra-cabeça sem poder ver a imagem da peça, mas mesmo assim, queria acreditar que estava chegando em algum lugar. — Sinto no ar o cheiro de alguém tentando me testar.

Ele começou a andar de um lado para o outro, seus passos ecoando pela sala. A cada passo, tentava conectar as peças dispersas, porém nunca achava uma resposta e sim novas perguntas para a qual também não tinha respostas. Finalmente, parou diante de um velho mapa da capital pendurado na parede.

Respirou fundo, abaixou a cabeça, sentiu uma forte depressão querendo se apossar dele.Ele sorriu e disse em voz alta:

— Capitão, percebi que é impossível ser o próprio psiquiatra… Classificar e dar nomes ao que estamos sentindo só pode ser feito por outra pessoa.

Aquelas palavras não fizeram sentido algum para Winston. Pareciam confetes jogados ao vento, sem qualquer utilidade. Contudo, ele relevou, surpreendendo-se com a própria indiferença; talvez estivesse simplesmente se acostumando com as recentes excentricidades de seu mestre. Como um bom servo, acenou com a cabeça, assentindo.

Heitor forçou os olhos com força, enquanto enfiava a mão por dentro do terno e retirava um pingente, uma joia com foto. Abriu os olhos lentamente e encarou a imagem de Yasmin. Desde que Norman havia desaparecido, ele usava aquela foto como um lembrete de não desistir enquanto ainda tivesse ar nos pulmões, de não falhar com a esposa de seu amigo.

Olhou para o sorriso de Yasmin e sorriu de volta, lembrando-se de quanto ela estava feliz naquele dia. A fotografia havia sido tirada durante a inauguração da maior universidade do Império. O vestido que ela usava era uma obra de arte, um testamento à beleza clássica, feito de cetim de seda que brilhava sob a luz do pôr do sol.

Heitor se deixou envolver pelas lembranças daquela ocasião única, uma pequena festa reservada aos mais próximos da coroa antes da celebração pública no dia seguinte. O salão de festas, situado no meio de uma clareira, era um cenário digno de conto de fadas.

Do lado de fora, Sir Roland proclamou com sua voz forte, que ecoou entre as árvores, espantando os pássaros da clareira:

— Preparem-se, meus bravos! Hoje caçaremos o javali, o senhor destes bosques, e demonstraremos nossa valentia perante os deuses e os homens!

Com um rugido de aprovação, os cavaleiros e seus cães partiram, galopando em direção à densa vegetação que cercava a clareira. A brisa da tarde soprava suavemente, carregando consigo o cheiro da terra úmida e das folhas recentemente desabrochadas.

Heitor notou o general Klaus virando as costas, prestes a entrar novamente no salão, e perguntou com tom curioso:

— Não vai participar da caçada?

Klaus parou, sua postura firme, mas sem virar o corpo.

— Você sabe — começou Klaus, sua voz impregnada de irritação —, há algo profundamente insatisfatório em capturar uma presa que nunca teve, de verdade, uma chance de vencer.

Ele se virou e se aproximou de Heitor, os olhos faiscando.

— É como pescar um peixe em um barril — continuou ele, o desprezo claro em seu tom. — Não há desafio, não há necessidade de estratégia ou habilidade. A presa está simplesmente… lá, esperando para ser colhida.

Ao longe, os latidos dos cães de caça ecoavam entre as árvores, sinalizando que a presa estava próxima. Heitor ajustou sua posição, seus lábios se curvando em um sorriso irônico.

— “Nada que vale a pena vem fácil”, certo? — disse Heitor. — Só os masoquistas dizem isso com orgulho. Se as coisas não fossem difíceis, não teria graça. Para mim, é lógico que teriam. Não há nada divertido em sofrer.

— Eu esperava mais de você — disse o General, quase num sussurro. — A verdadeira emoção da caça está na adversidade, em arriscar a vida, em ir para um all-in. Mas você… você não me parece o tipo de homem que joga valendo a vida.

Quando Klaus terminou de falar, um de seus servos apareceu e pediu que o acompanhasse. Heitor, ainda concentrado na lembrança, não notou Winston o chamando:

— Senhor… Senhor, por favor, me responda. Sua mão está sangrando.

Winston agachou-se e assustou-se com o que viu.

Na adega, o rosto de Heitor contorceu-se em uma expressão de pura fúria. Seus olhos, normalmente calmos e serenos, agora estavam injetados de vermelho, faíscas de ira borbulhavam em seu olhar. As veias em seu pescoço pulsavam ritmicamente, como se tentassem conter a explosão de emoção fervente dentro dele.

Seu corpo estava tenso e rígido, os músculos visivelmente contraídos sob a pele, prontos para explodir. Suas mãos, antes relaxadas, agora estavam cerradas em punhos apertados, as articulações brancas sob a pressão dos dedos. A mão que segurava o pingente estava sangrando devido à força que Heitor havia colocado sobre o pequeno vidro da joia, cujos cacos agora estavam espalhados pelo chão.

Winston não conseguia entender o que havia deixado seu senhor daquela forma. Já haviam interrogado outros suspeitos, e em nenhum deles Heitor agira assim. O que poderia estar se passando na mente dele para se auto machucar daquela maneira?

O Corbeau  ergueu a cabeça, e perguntou para o Dave ainda inconsciente:

— O que aqueles homens fizeram com Norman?

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Olá, eu sou Kaua Paulino!

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