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Três horas da manhã. A hora do demônio, segundo alguns filmes de terror, pensou Renato. Ele pôs o celular de canto. A luz da lua entrava pela janela aberta, deixando o quarto em penumbra. Era uma madrugada calorenta, como quase todas as outras nessa cidade. Nem uma pequena brisa fazia companhia dessa vez.

Estava sozinho, deitado na cama, com os olhos bem abertos. Jéssica e Mical não saíram do quarto desde que se trancaram lá durante o ritual de evocação; e Clara Lilithu havia saído para, segundo ela, fazer mais coisas secretas de súcubos.

O garoto tentou relaxar, dar umas risadas, enquanto assistia alguns vídeos de memes no YouTube, mas não adiantou. Estava tenso demais, nervoso com o que mais poderia descobrir. Sentia-se cada vez menor perante a existência de coisas sobrenaturais.

Lembrou-se dos vampiros. Decidiu fechar a janela. O quarto ficou ainda mais quente. Ele pôs o ventilador no máximo. O ventilador girou forte e jogou uma baforada de ar quente em sua cara. Abriu a janela de novo. “Melhor ser morto por vampiros do que cozinhar até a morte!”

Se remexeu na cama. Se perguntou o que seus pais adotivos estariam fazendo. Poderiam estar, nessa hora, em qualquer lugar perdido do Leste Europeu fazendo sabe Deus o quê. “Coisas secretas de pais”.

Limpou o suor da testa, foi quando percebeu que estava tremendo. Engoliu em seco. “Eu tive um ataque de pânico outro dia” pensou. “Agora um demônio foi evocado dentro da minha sala”. “Dois garotos da minha escola morreram. Não eram exatamente meus amigos, mas estão mortos. Será que vai morrer mais alguém?”.

Suspirou. Decidiu que precisava relaxar e, sem pensar muito, escolheu o método preferido dos adolescentes.

Pegou o celular de volta. Só precisou digitar o “x” na barra de busca que o resto do site apareceu quase magicamente.

Moveu o dedo pela tela, enquanto tentava encontrar algum material de entretenimento interessante.

Foi quanto a porta se abriu. Renato rapidamente apertou o botão que apagava a tela e meteu o celular no bolso.

— Tá pensando em safadeza? — disse Clara, com os olhos avermelhados brilhando no quarto escuro.

— Eu não! É claro que não.

Ela se aproximou e deitou na cama, ao lado do rapaz.

— Renato, eu sou uma súcubo, lembra? Posso sentir o cheiro de safadeza a quilometros. — Ela sorriu faceira — Me mostra seu celular.

— O quê? Meu… meu celular? Pra quê?

— Ah, me mostra, vai! Eu tô curiosa. Quero saber que tipo de fetiche bizarro você tem. O histórico do navegador de um homem esconde sua verdadeira  personalidade!

Ela se divertia com o constrangimento do rapaz.

— Ah, não tem nada de mais… é só… — Ele agradeceu em pensamento por sempre usar a aba anônima.

— Se você me mostrar… e for legal ou pelo menos criativo… talvez a gente possa transformar em realidade.

Renato tossiu, engasgando na própria saliva. “Meus ouvidos captaram mesmo palavras tão belas?” pensou ele. O cheiro delicioso de Clara chegou em suas narinas.

Ela estava tão perto! Usava uma camisola fina e provavelmente mais nada por baixo. Aquela pele oliva, um pouco mais escura que a das outras duas, brilhava embaixo do tecido.

Clara se mexeu, ajeitando-se de maneira mais confortável na cama. Nesse momento, Renato pôde ver um pontinho escuro através do tecido fino da camisola em um dos seios. O cérebro dele deu um nó.

— A gente podia fazer um pacto — disse ela, sedutora, maliciosa.

— Um pacto… — repetiu ele, de forma robótica.

— Um pacto com a súcubo — disse ela — exige mais do que um simples beijo. Exige algo… muito mais íntimo. Alguns homens não sobrevivem ao processo.

Ela tocou a ponta dos dedos sobre o braço de Renato e deslizou-os pelo ombro e peito. Como estava sem camisa, ele sentiu o toque diretamente em sua pele. Um arrepio subiu pelo corpo.

Ela se aproximou. O coração de Renato queria romper o tórax e pular para fora.

Aquele cheiro gostoso! Era agora!

Então a súcubo parou e olhou para a porta. Seus ouvidos eram bons, e por mais que aqueles passos fossem leves, ela ainda conseguiu ouvi-los lentamente aproximando-se do quarto.

Poderia ser uma das garotas que levantou e ficou curiosa? É claro. Mas o padrão dos passos não parecia com o de  nenhuma delas.

Até que veio o cheiro de ovo podre característico de pessoas possuídas pelo espírito de alguns tipos de demônios. Ela sentiu a intenção assassina no ar, pesada como chumbo.

— Cuidado! — Clara empurrou Renato com toda a força, fazendo o rapaz rolar pela cama e cair, sem entender, no espaço entre a cama e a parede.

Um míssil atravessou a madeira da porta como faca atravessa manteiga e se chocou contra a parede, abrindo um buraco com a explosão.

Uma montanha fumegante de estilhaços caiu sobre Renato e um calor infernal atingiu seus olhos, que arderam como se alguém derramasse ácido neles.

A vista ficou embaçada. O ouvido zumbia. Estava coberto por pedaços de tijolos e cimento endurecido quente, fumaça e fuligem. A garganta queimava. Os pulmões pareciam que iam derreter. Toda a cabeça latejava, parecendo que explodiria a qualquer momento.

Forçou o ar quente e cheio de poeira e fumaça para dentro do peito, ou morreria asfixiado.

Aos poucos o zumbido foi ficando mais baixo e ele começou a ouvir o que parecia uma briga. Olhou em volta e viu dois pares de pés pulando pelo quarto. Sem dúvida, um dos pés eram de Clara, o outro, no entanto, ele não conhecia, mas eram pés masculinos e usavam um par de botinas de aparência militar.

Um som parecido com gás saindo descontroladamente de um botijão foi ouvido, porém muito mais intenso que isso; e o quarto todo se iluminou com fogo. As chamas jorravam como a água de uma mangueira de bombeiro.

Renato percebeu que o colchão acima dele estava em chamas. Logo ficar ali embaixo se tornaria impossível. Ele se arrastou entre os escombros, com os pedaços de tijolos arranhando e cortando sua pele.

A súcubo transformou-se numa névoa avermelhada e parou atrás do mercenário. Ela pôs a mão sobre sua nuca e olhou para ele, de um jeito que só um demônio saberia, e esperou que o homem caísse agonizando e gritando de dor. Não aconteceu.

— Achou mesmo que isso funcionaria em mim? Estou decepcionado, Clarinha.

Ele agarrou-a e a jogou contra a parede, e segurou seu pescoço, apertando-o.

— Sabe, eu senti saudades — disse ele.

— Não posso… dizer o mesmo… seu nojento… filho… de uma prostituta… viciada em crack! — Ela respondeu com dificuldade, engasgando, com baba escorrendo pelo canto da boca e olhos de puro ódio.

Lúkin Ivanov, o Mercenário Possuído, apertou ainda mais o pescoço de Clara. Os lábios, sempre num tom de vermelho vivo, estavam ficando roxos. Ela se debatia, desferia socos, chutes, tentando se libertar, mas não tinha forças suficientes. Ela sabia a razão. Lúkin, apesar de humano, tinha um demônio dentro de seu corpo que lhe dava uma força e agilidade descomunal.

— Eu sabia que seu hábito de se intrometer nos negócios alheios um dia iria te matar. Eu te avisei, não avisei? Te pedi para tomar cuidado. — Os olhos de Lúkin eram vítreos, sem expressão. — Dessa vez, seu cadáver tá no pedido.

— Vai… grr — Ela puxava o ar com dificuldade — se foder!

Ele tocou a ponta do lança-chamas no belo rosto de Clara Lilithu.

— Hora do churrasco!

— Merda! Mas nem fodendo! — Renato pegou um pedaço de tijolo de uns dez centímetros que mais parecia uma faca, correu até invasor, e num movimento repentino, afundou o estilhaço nas costelas do mercenário.

Lúkin Ivanov gritou, levando a mão ao ferimento, soltando, dessa forma, Clara. Ela desmoronou no chão quase desmaiada.

O mercenário afundou os dedos dentro da própria carne e, fazendo uma careta de dor, arrancou o pedaço de tijolo pontudo dali. O sangue de Lúkin Ivanov escorreu num tom vermelho escuro, quase preto, molhando o chão.

Pilares de fogo se erguiam e consumiam todos os móveis.

O mercenário encarou Renato sem acreditar nos próprios olhos. Abismado por haver mais alguém no quarto onde ele só sentira a presença de Clara. Mas o pior era ter sido atingido por um moleque como aquele. Como? Elemento surpresa? Isso não deveria sequer existir ali!

— Eu vou arrancar sua espinha — sibilou Lúkin, entredentes.

Renato fechou os punhos e se preparou para a luta. Aquela sensação de adrenalina novamente correu em seu corpo.

— Maldito! Interrompendo as pessoas bem quando… na melhor hora!

Lúkin Ivanov disparou a arma em suas mãos, lançando uma tempestade de fogo feroz contra o rapaz, mas o jovem foi rápido e agil, desviando do bafo infernal e, antes que Lúkin pudesse fazer algo, Renato já estava muito perto segurando o lança-chamas pelo cabo.

Ivanov mandou um soco, mas Renato conseguiu interceptá-lo e segurar o punho de seu oponente; o impacto, porém, fez o cotovelo do rapaz estalar como galho seco se partindo.

Tanto Lúkin quanto a súcubo caída no chão olhavam sem acreditar no que viam.

O mercenário, em mais um ataque, atingiu o rapaz com um golpe que na capoeira é conhecido com Benção. O chute com a planta dos pés afundou no peito de Renato. A força do impacto o jogou para trás. Renato voou pelo quarto, com o lança-chamas nas mãos e, possivelmente, com o início de uma parada cardíaca.

Caiu após se chocar contra a parede, com a arma sobre o peito.

Com a respiração ofegante, tremendo, tendo espasmos por todo o corpo e vendo tudo embaçado, ele levantou a arma com dificuldade e mirou em direção ao mercenário.

— Caralho! Como se usa isso?! — berrou.

Antes que tivesse a chance de descobrir como disparar o sopro infernal contra seu oponente, Lúkin atropelou-o como um trem de carga teria atropelado um fusca; jogou-o no chão e desferiu inúmeros socos contra o rosto do rapaz.

Renato tentou reagir, golpeando nas costelas, chutando, esmurrando, mas seus golpes sequer pareciam ter alguma força contra o Mercenário Possuído. O rosto foi ficando cada vez mais desfigurado a cada soco que tomava. Lúkin batia com uma raiva demoníaca, tirando sangue, dilacerando carne. Um dente se partiu. Os lábio ficaram  como se tivessem sido passados pelo liquidificador.

Quase sem forças, Clara Lilithu rastejou até a poça de sangue deixada no chão por causa do ferimento de Ivanov e desenhou no sangue com os dedos.

Desenhou uma estrela dentro de um círculo e dois triângulos, um de cada lado: o da esquerda para baixo e o da direita para cima. Correu os dedos o mais rápido que pôde para escrever a palavra “EXILIUM”.

Na sequência, ela deu um tapa violento no chão, bem no centro da estrela.

 Uma intensa luz branca cintilou do desenho no sangue como um flash, cegando todos ali. Quando a luz se dissipou, o Mercenario Possuído havia desaparecido.

Renatou tossiu. Tentou se levantar, mas as pernas tremeram e ele caiu no chão.O zumbido no ouvido era insuportável. A única coisa que conseguia ver era o clarão das chamas aumentando, ameaçadoras, devorando tudo ao redor.

O rapaz se forçou ainda mais, se apoiando na parede quente. Conseguiu finalmente ficar de pé. Viu Clara caída sobre a poça de sangue, imóvel, inconsciente. Correu até ela. Chacoalhou-a. A súcubo não reagia. Renato constatou que ela ainda respirava, o que o deixou mais aliviado. Ele prendeu-a em seus braços e puxou-a, correndo para fora, com dificuldade e todo o corpo reclamando de dor, através do imenso buraco que o míssil havia aberto na parede.

Deixou a súcubo deitada na grama, longe do fogo, e voltou para dentro da casa. Torcia para as duas estarem vivas, mas temia pelo pior. Embora pessimista, precisava tentar salvá-las!

O fogo havia se espalhado por toda a casa. As labaredas, como monstros brilhantes e famintos, devoravam tudo. O calor era insuportável. Ele tossia, respirando a fumaça escura e fedida. A vista quis se apagar. Ele xingou o mais alto que conseguiu e forçou os pés a continuarem andando.

Chutou a porta do quarto e saltou para dentro do corredor, atravessando as chamas. O piso de cimento queimado estava quente como frigideira e os pés ardiam. O fogo havia chegado à sala e à cozinha. A porta do quarto de hóspedes queimava lentamente.

Ele explodiu a porta com o chute mais forte que conseguiu dar. O fogo já havia entrado no quarto, pelo madeiramento da casa, e havia atingido o forro de PVC, que derramava bolinhas incandescentes sobre o chão e os móveis. Era o início de um inferno.

Mical estava caída no chão, próxima à porta, com o braço esticado, como se tivesse tentando alcaçá-la antes de perder a consciência.

Jéssica estava deitada na cama. Parecia dormir alheia à destruição a sua volta.

Renato, assim que entrou, sentiu um cheiro estranho, e a tontura fez seu corpo balançar. Foi quando viu o tubo no chão, parecido com uma granada, expelindo gás. Ele prendeu a respiração.

Pegou Mical e jogou-a sobre os ombros, e correu de volta pelo corredor em chamas, evitando as labaredas o máximo que podia.

Deixou a garotinha sobre o gramado, ao lado de Clara, e voltou para a casa.

Assim que voltou ao quarto, viu a imensa viga de madeira que caiu sobre a passagem, numa posição transversal, junto de vários outros detritos e estilhaços em chamas, impedindo a passagem.

Pôde ver Jéssica, ainda insconsciente sobre a cama. O fogo havia aumentado e o quarto parecia um forno. As labaredas chegaram à cama e se aproximavam, vorazes, da menina. Se continuasse assim, logo ela seria cozida viva.

A fumaça espessa fazia os olhos de Renato arderem muito. As lágrimas escorriam. Estava coberto de cinzas e fuligem.

Ele tomou uma pequena distância e saltou sobre a viga. Teve que apoiar os pés na madeira fumegante, mas conseguiu cair dentro do quarto. Chegou até Jéssica e arrastou-a para longe do fogo, tirando-a da cama e pondo-a no chão. Ela tossiu, respirando a fumaça, mas sem acordar.

A tontura abateu novamente o rapaz. Só então ele se lembrou que precisava prender a respiração ou o gás ali o faria desmaiar.

Olhou para a passagem obstruída pela viga em chamas. Seria impossível sair por aquela brecha carregando uma segunda pessoa. Olhou para a garota, que tremia e gemia de dor.

Ele chutou a viga para ver se ela se deslocava, ou caía de vez, liberando a passagem. Não funcionou. Era pesada demais.

Renato, em desespero e sem conseguir pensar em mais nada, segurou a viga com as mãos nuas e, ficando embaixo dela, apoiou todo o peso nas costas. O fogo queimou-o e ele sentiu parte da pele das costas descolando da carne e grudando na madeira.

Usou toda a força restante. Grunhiu, gemeu, gritou. Todo o corpo ardia. Os olhos estavam cheios de lágrimas e poeira. Não conseguiu prender a respiração e puxou para dentro aquele ar quente, cheio de fumaça, cinzas e gás sonífero.

No último esforço, gritou tanto que a garganta doeu, mas, enfim, a viga caiu a seus pés. Renato caiu junto.

Arrastou-se até Jéssica, rastejando sobre  chão fervente, enquanto as gotas de pvc derretido caíam sobre ele. A garota, mesmo inconsciente, chorava de dor e gritava pelo nome de Mical.

Renato se ergueu. Segurou a menina em seus braços. Sentiu o perfume suave de rosas dela acariciando suas narinas.

As pernas se moveram na força do ódio até saírem da casa. Assim que pôs Jéssica ao lado das outras duas, Renato caiu no chão, inconsciente. A casa era uma bola de fogo brilhando na noite.

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Olá, eu sou o Max Sthainy!

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