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Capítulo 49: Finalmente o Paraíso (ou não)

— Parabéns, Renato. Você fez merda.

— Mas… droga! Eu só queria…

— Eu sei. Só queria ajudar — Clara suspirou, enquanto olhava para a demi-humana se contorcendo no chão e gritando. — Mas não importa. Essa coitada continua sentindo uma dor excruciante.

Vários curiosos se aproximaram, formando um círculo. “O que aconteceu?” e “Alguém chama o SAMU” foram frases que puderam ser ouvidas.

— Será… será que dá pra fazer alguma coisa? — disse Renato, se aproximando da demi-humana e se ajoelhando ao lado dela. Tentou pensar em algo, mas não fazia ideia do que poderia ser feito.

Clara se aproximou e pôs as mãos sobre a cabeça da demi-humana, e então a garota parou de gritar, seu corpo ficou mole e  ela apenas adormeceu.

— Ela não vai sentir dor se estiver inconsciente. Isso não resolve o problema, mas nos dá algum tempo.

— Ei, vocês conhecem ela? Sabem o que aconteceu? — disse um homem que se aproximou. — Alguma coisa machucou ela?

Clara direcionou ao homem um olhar frio de puro desprezo. Depois segurou a demi-humana em seus braços e começou a andar.

— Vamos, Renato.

— Sim!

— Ei, esperem! O que houve? — disse alguém na multidão de curiosos.

No meio do caminho, perceberam que a cidade estava mais movimentada do que o normal. Caminhões dos bombeiros e viaturas da polícia percorriam a cidade de forma frenética. Os dois chegaram a ver dois incêndios: um num prédio, e outro num supermercado. Em ambos, parecia uma zona de guerra, com os bombeiros lutando corajosamente, tentando apagar o fogo. Tinha pessoas chorando, falando que perderam tudo, tinha até vítimas fatais.

Toda a cidade parecia a ponto de explodir.

— Deixa que eu levo ela — disse Renato.

— Não precisa. Eu sou forte — respondeu Clara, carregando a demi-humana no colo.

— Eu também. Eu posso levá-la. Afinal, é culpa minha ela estar nessa situação, não é?

— Verdade. É culpa sua mesmo.

Clara entregou a garota para Renato.

Caminharam mais um pouco. Até que um táxi passou pela rua e Clara fez sinal. O motorista encostou ao lado. Clara explicou para onde queriam ir. O motorista, um homem barrigudo, de bigode grosso e barba falhada olhou para a demi-humana com desconfiança.

— A gente tava num evento de fantasia, sabe? Tipo aqueles cosplay — explicou Renato. — Aí minha amiga bebeu demais e acabou apagando. Pode levar a gente?

— Bebeu demais? Só espero que a garotinha pé de cana aí não vomite no carro. Vamos. Entrem aí.

— Humpf — fez Clara, mal humorada. — O pessoal do Uber é mais simpático — cochichou para Renato, enquanto entravam no carro.

— Não culpe o cara. A preocupação dele é legítima. Tenho certeza que os ubers pensariam o mesmo que ele.

A súcubo deu de ombros.

— Pelo menos eles têm balinhas no carro.

Renato caiu na risada.

— Há quanto tempo você não anda de uber? Tá tudo caro, sabia? Não tem mais balinhas no carro há bastante tempo.

— O quê?! — Clara pareceu chocada.

— Bom, pelo menos eu não vejo balas em ubers há mais de ano.

— Droga. O mundo não tem mais salvação.

Quando chegaram no predinho de Clara, suspiraram aliviados. Ao contrário de todo o resto da cidade, ele estava em ordem, aparentemente. E a sensação de estar de volta em casa, depois de um tempo no Inferno, era realmente revigorante.

No estacionamento, não havia mais a bagunça de antes. Os carros que tinham sido explodidos no ataque de Lukin não estavam mais ali, e até o cadáver de Jade tinha sumido. Estava tudo limpo e organizado.

Subiram as escadas.

Foi quando Clara parou repentinamente  e farejou o ar, atentamente. Renato olhou pra ela, tentando entender o que estava acontecendo.

— Tem alguma coisa errada.

— Ah, não. Não me fala que é mais alguém tentando matar a gente. Eu não tenho um mísero dia de paz nesse caraio! Tomar no…

— Não. É… estão deixando o bolo queimar!

— O quê?!

Clara desapareceu em névoa e, nessa forma intangível, se moveu rápida como o ar até a cozinha e desligou o forno, impedindo que estragasse completamente o bolo de cenoura que assava.

Renato apertou o passo o máximo que pôde, subindo as escadas e carregando a demi-humana nos braços. Quando alcançou Clara, na cozinha, sentiu o cheiro agradável de bolo de cenoura. Sua barriga roncou.

Foi quando Mical e Jéssica apareceram, subindo as escadas. Usavam roupas de treino: shorts lycra e top sobre os seios, e luvas de boxe, e estavam suadas.

— Quem tá a… Renato! Você voltou! — Mical correu até ele, e então parou de supetão na metade do caminho, olhando para a garota inconsciente em seus braços. Tinha uma sombra de preocupação em seus olhos.

— Irmã! Jés! O Renato trouxe uma garota pra casa!

— E-eu tô vendo! Deve ser só uma… uma parente! Talvez uma prima. — Sua sobrancelha se movia em espasmos leves de nervosismo e ela mordiscava os lábios.

Clara deu um sorriso maligno. Seus olhos brilharam vermelhos quando ela se aproximou. Emulou perfeitamente uma face entristecida.

— Eu tentei conter ele, meninas. Juro que tentei! Expliquei que sequestrar uma garota inconsciente só porque ele a achava bonita era meio demais, falei que era errado, mas ele não quis ouvir! Ele só dá ouvidos  à própria luxúria!

— Não pode ser! — Mical levou a mão à boca, em choque. — Então o Renato é esse tipo de homem…

Jéssica pigarreou.

— T-tenho certeza que deve haver uma explicação. O Renato não é assim. Ou é? Talvez ele tenha disfarçado esse tempo todo…

— Eu falei pra ele! — Clara estava dramática. Parecia até uma atriz de teatro. — Eu disse que ele já tinha duas garotinhas lindas em casa e não precisava de mais ninguém! Mas ele quis ouvir? Não! É um guloso!

— Um guloso?! — Mical estava ainda mais chocada. — Mesmo já tendo nós duas aqui?!

— Perai! Como assim “ele já tem duas garotinhas lindas em casa”?! — Jéssica se irritou. — Não é como se ele tivesse a gente nem nada do tipo. Só somos legais com ele porque somos educadas! N-nada além disso!

— S-sim! É verdade! Educadas! Apenas isso! — Mical balançou a cabeça, concordando com a irmã.

— Bom, se é assim — Clara sorriu como só um demônio faria e seus olhos brilharam como dois rubis —, então não se importam de eu ficar com ele só pra mim, né? Já que vocês não estão interessadas, e tal…

Mical começou a ficar desesperada. Sentia que tinha caído numa armadilha.

— Espere aí! — Jéssica estufou o peito. — Quem tem que decidir isso não é o Renato? Tenho certeza que ele não se deixaria seduzir por um demônio.

— Ah, será? — Clara sorriu de um jeito malicioso. — Sabiam que ele até já admitiu que me quer? “Então transa comigo, caraio” foram as palavras que ele usou. Ele tem o hábito de pôr palavrões nas frases, vocês sabem, mas acho que entenderam. Sabem como é, né? A gente passou bastante tempo juntos lá no andar de baixo, então… acho que é inevitável surgirem sentimentos.

— O-o quê?! — Jéssica parecia a ponto de ter um infarto. — Renato! Isso é verdade?!

Mical apenas abaixou o olhar e começou a sussurrar “isso é mentira” repetidas vezes para si mesma.

Renato suspirou.

— Onde eu posso deixar ela? — disse, se referindo à demi-humana.

— Fugiu completamente do assunto?! — Uma veia parecia que ia estourar na testa de Jéssica.

Clara sorriu.

— Escolhe um quarto por alí. Qualquer um serve.

— Certo. Gente, eu tô muito cansado, então vou deixar essa garota-gato ali, tomar um banho e ir dormir. Qualquer coisa, a gente conversa depois.

Ele apenas saiu. Logo em seguida, um silêncio constrangedor tomou conta da cozinha, então Clara tratou logo de o quebrar, expressando sua indignação:

— E como vocês podem esquecer o bolo de cenoura no forno?! Hein?! Ele quase queimou! Isso é um pecado que nem eu posso aceitar!

— Ah, é que… — Mical pareceu sem graça — eu esqueci completamente dele. A gente foi treinar e…

***

Após o banho, Renato foi até o quarto que havia escolhido para si e se deitou. Os lençóis eram macios; e o colchão, confortável. Não conseguia relaxar assim há bastante tempo. A demi-humana dormia no quarto ao lado.

Ao finalmente relaxar, o sangue esfriou e ele começou a sentir as dores pelo corpo. As costelas eram as que mais doíam. Latejavam. Quem foi o primeiro a acertá-la, ele tentou se lembrar. Deve ter sido o Mercenário Possuído. Depois o Satanakia também desferiu alguns golpes na região. “Tenho que ir tirar um raio-x depois” pensou. “Agora só preciso dormir um pouco.”

E enquanto ele deixava sua mente divagar lentamente sob a penumbra do quarto, a porta se abriu, a Mical entrou. Estava com as bochechas coradas. Parecia tímida.

— Renato — disse com a voz baixa. — Sabe o que é…

— Hum? — Ele abriu os olhos e distinguiu sua silhueta na penumbra do quarto.

A garota se aproximou e sentou-se sobre a cama.

— Eu senti saudades — falou baixinho. — A Jéssica não vai admitir tão fácil, mas ela também sentiu. Tivemos medo de que você não voltasse.

Ele suspirou.

— Mas é claro que eu voltaria. Eu prometi, não foi?

— Foi.

Renato percebeu que ela queria falar alguma coisa, mas que estava hesitando, então resolveu perguntar logo.

— Tem alguma coisa que quer dizer?

— Hã? — A garota ficou surpresa. Pensou em negar, mas decidiu falar logo de uma vez. — Então, é que… você passou bastante tempo com a Clara, né?

— É.

— Acho que seria legal se… sabe… você passasse algum tempo comigo e com minha irmã também.

— É claro. Eu adoraria.

— A começar por agora.

— Hum?

— Já que você está tão cansado e quer dormir, eu tava pensando se, assim, só se você quiser, sabe, a gente poderia dormir, tipo… assim… junto.

Renato abriu os dois olhos rapidamente e começou a prestar mais atenção à conversa.

— Por dormir você quer dizer…

Mical tinha as bochechas muito coradas. Os olhinhos de esmeralda brilhavam.

— Também estamos cansadas. Eu e Jés ficamos treinando o dia todo. Acabamos de tomar banho e queremos descansar também. Poderíamos fazer isso todos juntos, né? É normal com pessoas que são próximas, não é? Hum? O que você acha?

— Eu acho uma ótima ideia — respondeu Renato, com um sorriso sincero no rosto.

— Beleza! — A garota fez uma expressão que alguém jogando FIFA faria após marcar um gol. — Jéssica! Ele aceitou!

— Oba! — A voz dela veio do lado de fora do quarto, porém bem próxima da porta. — Beleza! — pigarreou — Q-quero dizer, se ele está com tanta saudade assim e insiste para que façamos companhia para ele, então eu aceito também.

Ela entrou no quarto com peito estufado e olhar altivo.

Renato quase riu, mas se conteve.

— Ter a companhia de vocês me faria realmente feliz.

— Certo! — disseram as duas irmãs ao mesmo tempo e pularam na cama, cada uma de um lado.

Renato sentiu o perfume delas. Era parecido, mas ainda assim diferente. O de Mical, do lado direito, era mais adocicado e tinha alguma coisa de morango. Lembrava aqueles gloss com sabor de frutas que algumas adolescentes adoram.

O perfume de Jéssica, no entanto, era mais maduro, do tipo que poderia ser sentido numa mulher adulta. Tinha algo de flores, mas ele não sabia dizer qual.

Eram ambos deliciosos.

— Eu saí do Inferno e vim direto para o Paraíso — sussurrou, antes de adormecer junto das duas garotas.

***

Renato acordou no meio da madrugada. Precisava ir ao banheiro, porém quando tentou se levantar, não conseguiu. Jéssica dormia como um anjo, fazendo seu braço esquerdo de travesseiro. Renato tentou tirar o braço de vagar, sem acordar a garota, foi quando sentiu uma sensação de choque passando por ele. Notou que o braço estava dormente.

— Droga.

Usou a mão direita para, com todo o cuidado do mundo, mover a cabeça de Jéssica. Depois teve que esperar alguns instantes para o sangue correr pelo braço esquerdo e a vida retornar a ele.

O garoto se levantou com um salto e correu para o banheiro. Depois de tirar a água do joelho, voltou para o quarto e deu de cara com Jéssica.

— Ah, oi — disse ele, meio sem graça. — Eu te acordei?

— Renato, você tá diferente.

— Diferente? Como assim?

— Não sei dizer ao certo. Aconteceu alguma coisa lá?

— Aconteceu um monte de coisa lá.

— Eu e minha irmã, nós temos uma intuição, sabe? Conseguimos ver quando alguém tem algo de maligno. — Ela engoliu em seco. — Quando nos conhecemos, não tinha nada em você, nem bom, nem mal. Era até estranho. Parecia apenas uma incógnita.

Renato permaneceu em silêncio apenas ouvindo. Jéssica prosseguiu:

— Mas agora tem alguma coisa. Tenho certeza que Mical também percebeu. Não sei dizer a natureza, mas é como uma mácula. Uma cicatriz na alma.

— Será que essa cicatriz é muito profunda?

— Não sei, mas quando eu olho bem nos seus olhos, vejo dor. E vejo fogo. Muito fogo. Espero que você ainda seja aquela pessoa que conhecemos.

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Olá, eu sou Max Sthainy!

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