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Capítulo 38 – Mundo Inferior

Recostado em uma estante no chão da biblioteca, Ezequiel virava as páginas de um livro quando algo cobre sua visão. Afastando seu rosto, ele lê o título dourado esculpido na capa de couro escuro: — Registro das Bestas Históricas.

Se sentando ao lado dele, a mulher de cabelos prateados o entrega o livro e deita em seu ombro cheia de espreguiça.

— Você quer que eu leia isto? — ele pergunta pegando o livro, mas a mulher cansada não responde.

Abrindo o livro, ele observa algumas figuras desenhadas com tinta escura, provavelmente feitas usando uma pena de caligrafia. Eram ilustrações das criaturas descritas naquelas páginas. — Isso não são contos, você vai ter pesadelos se souber o que está escrito — ele tentou explicar para ela, porém, os olhos semicerrados da moça demonstraram que ela já estava cochilando.

Sabendo que ela não ouviria, Ezequiel começou a ler. A moça podia estar dormindo, mas ele se interessou no conteúdo.

Espectros, criaturas metamórficas do tipo vampírico. Quando se prendem a humanos, vasculham suas mentes e trazem acontecimentos ruins para desnortear seu alvo. Diferente de outras classes de criaturas vampíricas, os espectros apenas se alimentam de vitalidade. Não se sabe ao certo qual seria a forma final dessa criatura no auge de sua evolução, já que até hoje nenhuma foi vista…

Pouco tempo se passou desde que os olhos da mulher se fecharam, e Ezequiel continuou a ler apenas para si. Ele já havia lido quase três terços das páginas, o que não era difícil, já que a maioria delas possuíam ilustrações.

Uma mão de repente toma o livro de Ezequiel. Surpreso, ele levanta seu olhar para ver quem o atormentava. — Seu Zhao, quer me matar do coração? Podia fazer algum barulho ao se aproximar — ele diz ao perceber que era, na verdade, a pessoa que ele estava desde cedo procurando, o bibliotecário.

Trajado com um terno de alta classe, o bibliotecário mantinha uma postura firme e honrada. Por um instante ele dirige seu olhar à mulher deitada no ombro de Ezequiel. — Ela está com você? — ele pergunta com seriedade.

— Sim.

Fechando o livro, o bibliotecário faz a leitura do título, seguindo imediatamente para o conteúdo: — Registo das Bestas Históricas, setenta e três páginas. Quando terminar, coloque-o em cima de minha mesa, o guardarei quando voltar.

— Espera — diz Ezequiel recebendo o livro e se afastando da mulher, a deitando num amontoado de livros —, preciso de um lugar para ficar. 

— Você espera que eu o ajude com isso? — o bibliotecário pergunta sem permitir que Ezequiel responda. — Alguns anos atrás fiz sua recomendação para os anciões do colégio, o convidei para se tornar um aluno sob minha tutela. Além de ser recusado como se essa fosse a maior das torturas, você me envergonhou na frente daqueles dragões antigos. Ainda permito que use a biblioteca, o conhecimento é algo que não pode ser privado das pessoas, mas ousa me pedir um favor sabendo da vergonha que me fez passar?

Surpreso com o andamento da conversa, Ezequiel tenta explicar: — Eu fui obrigado a ir até lá, se soubesse que ia me recomendar, teria rejeitado antes de você fazer a oferta. Se você tivesse me avisado sobre, eu teria recusado.

— Dado a sua fome de conhecimento, acreditei ser algo benéfico para ti e para mim. Poderia ter escolhido um bom aluno para me acompanhar em meus estudos, um que se dedicasse a mim, por sua causa perdi minha recomendação.

“Que situação complicada”, pensou Ezequiel ao perceber o quanto aquilo havia o deixado chateado. Isso aconteceu poucos meses depois de ele ter chegado à cidade, mas desde então o bibliotecário nunca havia tocado no assunto. Agora que Ezequiel parava para pensar, essa era a primeira vez que ele pedia algo ao bibliotecário; ele estava guardando seu rancor para quando chegasse esse dia?

— Você é tão paciente assim? — ele pergunta incrédulo, esquecendo que devia manter isso em sua mente. — Olha, preciso de um lugar para ficar, me ajuda nessa vai. Se eu tentasse ficar em alguma sala, muito provavelmente iriam me expulsar, e meio que só te conheço por aqui.

Fitando Ezequiel com seus olhos dourados, o bibliotecário o estuda de forma fria, fazendo ele sentir algo de estranheza. A sensação de estar sendo observado por um olhar afiado, algo que o incomodava bastante por causa de seu tio Cláudio.

Agora que parava para pensar, tanto seu tio quanto o velho Zhao e o gordinho da prisão tinham um ar de superioridade à sua volta. Eles tinham alguma ligação? Ezequiel estava prestes a perguntar quando o bibliotecário interrompeu seus pensamentos.

— Deixar vocês ficarem aqui para babarem nos livros? — ele disse apontando para a mulher de cabelos prateados e a poça de baba que escorria de sua boca.

— Eu vou limpar

— Não me incomode Ezequiel, estarei ocupado pelas próximas duas semanas. Vá até o fim do corredor e vire à direita, vai encontrar uma porta lá. Além de você, apenas uma pessoa sabe sobre ela. Pode dormir na biblioteca hoje, contanto que isso não se repita nos próximos dias. Você me causará problemas se for encontrado pelos alunos da turma noturna.

Pondo a mão em seu bolso, o bibliotecário tira de lá uma chave e a joga para Ezequiel. Ele finaliza antes de ir embora: — Ficarei ausente desde agora, então não terei tempo de vir aqui; feche a biblioteca por hoje e a abra novamente amanhã de manhã. Você deve fazer pelo menos isso se quiser ficar.

— Eu faço! — Ezequiel respondeu feliz.

O bibliotecário concluiu indo embora: — Você deve saber que há um galpão próximo daqui. Se não se importar em dividir sua cama, pode jogar coisas sem uso nele.

Um sorriso de felicidade tomou o rosto de Ezequiel ao ouvir aquilo. Sem esperar o homem desaparecer, ele corre para o fim do corredor em busca da porta. Mas onde estava o “fim” daquele corredor?

Prateleiras infinitas tomaram o campo de visão de Ezequiel no momento em que ele se virou. Naquele ambiente calmo cor de âmbar da biblioteca antiga, mais de milhares de livros e prateleiras apareceram do nada. O que o assustava não era a quantidade de livros, mas o fato de nada daquilo estar lá a apenas alguns segundos.

Olhando para a chave da biblioteca em sua mão, Ezequiel entendeu o que havia acontecido; uma chave mágica. Mas apenas para confirmar, ele se aproximou de uma das novas estantes e observou os vários títulos nas laterais dos livros. Livros desconhecidos, que ele nunca teria conseguido ao menos ver sem aquela chave.

— É maior por dentro do que por fora — ele concluiu ao entender que a biblioteca havia se estendido em quase todas as direções.

Algo de repente incomoda Ezequiel. O bibliotecário tinha acabado de falar sobre uma turma da noite, mas ele nunca ficou sabendo da existência de tal turma naquele colégio. Será que eles eram diferentes dos alunos normais, ficando também em áreas mágicas escondidas?

Mantendo isso em sua mente, ele procurou pelo fim do corredor. Cada corredor tinha duas fileiras de estantes, e havia seis estantes em cada fileira. Depois de cada fileira havia um espaço de um metro e meio até as próximas fileiras. Porém, mesmo com seus olhos, Ezequiel não conseguia ver um fim para aquela biblioteca.

— O final do corredor… esse era o final do corredor antes de eu tocar a chave, será que…— Olhando no espaço entre as fileiras da nova área e a antiga, ele percebe haver uma porta escondida no lado direito da sala  do outro lado da biblioteca.

Caminhando em direção à porta, ele gira a maçaneta. Conforme a porta se abria, uma luz amarelada de cor clara invadia a biblioteca. Um quarto antigo, sujo e empoeirado, não haviam apenas livros velhos no chão como todo tipo de tralha que se podia imaginar.

Invadindo o lugar, Ezequiel caminha de forma cuidadosa entre os objetos até a parede do outro lado, onde uma janela guilhotina com vista para o pôr do sol iluminava o ambiente.

Era realmente incomum, apesar do quarto estar cheio, não havia nada além daquela antiga janela no centro da parede central, e um pequeno armário de duas portas um pouco mais ao canto daquela mesma parede.

Se aproximando da janela, Ezequiel recebe o calor do sol poente em sua face. — Esse lugar é realmente bom — ele diz para si desviando o olhar para o ambiente —, é um pouco apertado, mas se tirarmos todas essas coisas vai nos acomodar facilmente.

Indo até o armário, ele tira de lá um lençol e um travesseiro. O quarto estava empoeirado, mas não havia um grão de sujeira sequer próximo àquele armário. — Só falta me dizer que é um armário mágico capaz de me levar para um mundo governado por um leão falante. — ele disse rindo um pouco.

Saindo do quarto com o lençol e o travesseiro, Ezequiel caminha de volta para onde a mulher de cabelos prateados repousava. Mesmo estando no chão, ela dormia como um bebê em sua cama.

— Você deve ficar aqui, eu volto antes do amanhecer — ele disse, ajeitando o travesseiro no lugar dos livros e embrulhando o lençol ao redor do corpo dela. Mas não sentiu que aquilo era o suficiente para deixá-la segura.

Se afastando um pouco, Ezequiel morde o próprio pulso fazendo algum sangue escorrer por seus braços. Com sua outra mão, ele puxa algo de dentro de sua pele.

Formando-se através de seu sangue, um arpão dourado se molda de acordo com sua vontade; e logo que finalizado, ele dobra o arpão ao redor do pulso da mulher como se fosse um simples arame de metal, fazendo do item uma pulseira.

— Agora ninguém vai machucá-la — ele diz se afastando silenciosamente.

Dando uma volta pelos corredores, Ezequiel se certifica de não haver ninguém além deles na biblioteca. Estava realmente vazia. E logo ele se dirigiu a saída, e trancou a porta pelo lado de fora.

— Parece tão errado trancá-la, acho melhor eu voltar logo. — Se pondo a correr, ele adentra a floresta a oeste do colégio. 

Logo um lago aparece entre as árvores, e no centro do lago uma pequena ilha repousava na sombra de uma grande árvore. Não era grande o suficiente para tomar toda a ilha, mas tinha seu próprio charme.

Tirando suas roupas para elas não se molharem, Ezequiel entra na água as segurando para cima. Na metade do lago seu corpo foi quase por completo consumido, mas a água não subiu além de seu queixo.

Jogando suas roupas na ilha, ele pula de volta para dentro do lago e se espreguiça de forma vívida. — Que refrescante! Vai me dizer que essa água também é mágica? Há tantos mistérios nesse colégio que eu não duvidaria se me dissessem isso.

Depois de um banho relaxante, Ezequiel sai e se veste, se recostando na árvore de forma preguiçosa. — Ainda tem isso — ele diz pegando faixa presenteada a ele por Artéraphos, começando a enrolá-la novamente em seu corpo.

Com dificuldade de enrolá-la, ele a segura pela ponta e tenta controlá-la com seus pensamentos como Artéraphos havia lhe ensinado. A faixa se move dançando junto ao vento, mas mal se levantando como da última vez. Parecia ter se tornado ainda mais difícil movê-la agora.

— Não tem jeito, acho que estou cansado. Por hoje é isso. — Fechando seus olhos, ele recosta sua cabeça na árvore e repousa por um momento

Seu dedo antes parado começa a circular pela grama macia e molhada pela água que ainda descia por sua pele. Algo de repente chama a atenção de Ezequiel.

Escorrendo pela ponta de uma folha, uma gota de água cai por seu peso exacerbado. Pondo seu dedo mindinho no caminho, Ezequiel sente a água fria bater contra a ponta de sua unha.

— Um círculo… — ele pensa em voz alta voltando a circular seu dedo pela grama.

Apesar de seus olhos estarem fechados, Ezequiel estranhamente parecia conseguir enxergar.

O sol já havia desaparecido. E junto a ascensão da Lua, uma escuridão incomum toma aquela área. Algumas palavras saem da boca de Ezequiel, palavras que não podiam ser ouvidas.

— HÁ! — ele grita levantando sua mão de forma brusca, a batendo no chão com força. O som de algo se quebrando ressoa pelo lago.

Caindo em um buraco que se abriu no momento em que ele bateu a mão no chão, Ezequiel grita ao perceber o que estava acontecendo. Mas outro grito ecoa junto ao dele o fazendo procurar pelo dono daquela voz.

Virando-se para cima, ele vê uma garota de cabelos vermelhos cair junto a ele. Ela grita, ele também grita, e ela grita ainda mais ao ver que caia num poço escuro e aparentemente sem fim.

— Vamos morrer! — Ezequiel grita fazendo a menina gritar mais ainda. Sem conseguir aguentar o rosto de desespero dela, ele começa a rir.

De repente uma luz chama a atenção dos dois, era a luz de um Sol que já alto brilhava no céu azul.

Olhando para baixo, a menina observa o chão a vários quilômetros de distância se aproximando, sentindo seu corpo ser puxado forçadamente pela gravidade, ela gritou mais ainda.

Girando seu corpo no ar de forma estranha, Ezequiel se move em direção à garota. Pegando-a pela cintura, eles caem juntos de ponta cabeça. — Escute — ele diz no ouvido dela —, se continuarmos caindo dessa forma, vamos espatifar. Segure-se em meu pescoço.

Apesar de não ter certeza sobre aquelas palavras, ela fez assim como pedido. Puxando as pernas dela, Ezequiel a segura em seus braços — Se encolha o máximo que puder — ele conclui antes de girá-la no ar, fazendo seus corpos girarem como loucos em queda livre.

A menina mal teve tempo de pensar antes de sentir um tranco em seu corpo e ouvir um alto estrondo causado pelo vento se rachando. Atordoada, ela abre seus olhos.

Um chiado estridente toma seus ouvidos junto a imagem de destruição dos arredores. Pelo que parecia, ela estava no centro de uma cratera, não havia nada por pelo menos quinze metros.

— Haha, foi mal, acho que te meti em uma furada. — Ezequiel ri fazendo a garota voltar a si.

— Isso… isso é o mundo subterrâneo? — ela pergunta, mas Ezequiel apenas dá de ombro por não saber do que se tratava.

— Você conhece esse lugar? — ele pergunta.

— Se for o que estou pensando, eu já o vi uma vez com meu padrinho. AHh!! — Pega de surpresa, ela grita ao ser reajustada no colo de Ezequiel. — E-espera, eu posso andar.

— Não precisa ter vergonha, sei que suas pernas estão sem força. Como você está aqui por minha culpa, vou ajudá-la a sair daqui — ele responde se pondo a caminhar.

— Mas, e como viemos parar aqui? Estávamos no colégio, tenho certeza, eu estava…

Percebendo ela cortar a frase, Ezequiel brinca. — Onde você estava mesmo? Eu lembro de estar numa ilhazinha, mas não te vi por lá.

— Estava dormindo. Eu dormi num galho quando cai — ela respondeu evitando os olhos de Ezequiel.

— Dormindo, sei.

— V-você não me explicou como viemos parar aqui — ela insistiu mudando de assunto, Ezequiel não se importou.

— Em, sobre isso, não tenho certeza. Eu apenas imaginei que havia um buraco embaixo de mim, quando percebi já tinha caído. UP! — Saindo de dentro da cratera, Ezequiel adentra um pouco na floresta.

— Como assim imaginou? Qual é o seu nome? O meu é Cecília.

— Shh!! — Fazendo um chiado para que ela ficasse quieta, Ezequiel aponta para a cratera de onde eles saíram. Criaturas quadrúpedes invadiram o local em busca de algo, mas não eram criaturas comuns, eram monstros.

— É melhor irmos logo. Você disse conhecer o lugar, sabe onde tem uma saída?

— Hum un… — ela murmurou em negação.

Ezequiel percebe haver preocupação no rosto de Cecília. — Haha, mas que má sorte, já começamos o dia assim. Se bem que era de noite quando estávamos no colégio, aqui está amanhecendo.

— É…

O rugido de alguma besta ecoa fazendo Cecília apertar o pescoço de Ezequiel.

— Bom princesa, já que estamos aqui, vamos precisar encontrar uma saída, certo?

— Sim — ela afirma.

— Acho tudo bem caminhar um pouco, até o anoitecer nós vamos poder sair, só precisamos encontrar… — se calando por um instante, Ezequiel para de se mover.

Curiosa com o que havia acontecido, Cecília tenta se virar para ver, mas acaba tendo que descer do colo de Ezequiel para conseguir.

— Isso…

Como uma pintura, o céu azul límpido era adornado pelo sol, que banhava os vales e as planícies com sua luz resplandecente. Cervos, coelhos e pássaros dividiam o mesmo espaço, harmoniosamente. Um mundo vivo, e totalmente desconhecido para Ezequiel e Cecília, um mundo diferente daquela cidade de tons azuis de vidro, ou daquele castelo branco construído em pedra.

— É lindo, certo? Não existem animais lá de cima, mas aqui existe. 

— Esse sol, ele é falso como o nosso? — Cecília pergunta sem conseguir diferenciar.

— Sim, ele é falso, mas tem algo que o diferencia do sol lá de cima.

— O quê?

— Quer descobrir? — ele pergunta pegando o pulso dela com um sorriso. — Contanto que me ouça, até o anoitecer estaremos de volta são e salvos. Você vai confiar em mim?

Sem conseguir dar uma resposta, Cecília apenas se deixa levar por Ezequiel que a puxava em direção àquele novo mundo. Ela se sentia relutante, mas algo em sua cabeça dizia que ele era diferente de outras pessoas, que era alguém que ela podia confiar.

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Olá, eu sou D. Machado!

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