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O quão vago deve ser este mundo para percebermos que tudo segue um rumo natural? Quando olho para fora desta caverna, vejo um sol envolto por uma aura de chamas, um evento criado por alguém. Se abaixo meu olhar e observo as planícies, percebo criaturas, monstros demoníacos se comendo brutalmente, e isso foi incitado por alguém.

A verdade é que todos os seres desejam evoluir, sejam eles monstros ou humanos, mas a ordem foi destruída.

***

Dentro das sombras, figuras se moviam entre meio ao corpo das criaturas mortas na planície. Sempre que um das bestas caia, uma silhueta retirava algo de dentro dela. Ezequiel observava da boca de uma caverna, no alto da montanha, como se estivesse presente.

— Talvez ele queira manter um estoque — ele conversa sozinho —, por que meu tio faria seus servos virem aqui só para isso? Se for o que estou pensando, isto é uma fábrica de itens. Se usar seus servos, é totalmente possível ter itens infinitos. Que método desleal, devo usá-lo? — Com um traço de dúvida em seu rosto, Ezequiel negou com a cabeça.

— Preciso de partes de criaturas para nutrir meu corpo, mas não tenho tempo para construir um lugar desse — Guardando a ideia para outro dia, ele observa um pouco mais quando uma questão vem a sua mente: de onde estavam vindo essas bestas? Sem chegar a uma conclusão ele adentra a caverna.

Apesar do caminho ser extenso e labiríntico, demorou pouco até encontrar a passagem da piscina onde Cecília repousava. Como uma princesa em seu banho de aromas, a menina dormia calmamente em seus braços, que estavam cruzados na borda da piscina de rochas. Havia uma imagem mistica e fascinante ao redor dela, mesmo Ezequiel parou de caminhar ao tê-la em vista.

A respiração de Ezequiel saiu forte. Apesar de impressionado, pouco havia demonstração disso em sua face.

A menina se meche com a aproximação de Ezequiel — Vem para cá — disse ela de olhar cansado, fazendo um gesto com a mão ao percebê-lo.

Ezequiel estava indo a outro canto da caverna, mas atravessou a passagem até a beira da piscina de pedras e sentou-se de costas para Cecília, evitando olhar para seu corpo. O tempo passou de forma lenta desde então, só não silenciosamente como ele desejava.

A cada segundo que passagem as sobrancelhas de Ezequiel tremiam, de forma alguma era medo. Seu rosto rancoroso e os tiques em sua sobrancelha mostravam ser um som específico que ecoava pelo lugar, irritante, parecia matá-lo. Ele não se importava se Cecília queria ou não sair da piscina, sangue de monstros era um ótimo tônico e até fazia bem para a pele, mas por que motivos ela estava batendo seus pés no líquido de forma tão irritante?

— Quer sair dai? — ele perguntou já não aguentando.

— Sinto meu corpo formigar, como se estivesse recebendo massagem por ele todo. Preciso sair? — ela perguntou sem vontade alguma de se mover. Mesmo ela nunca havia recebido tal tratamento divino em seu corpo. Em sua mente, nenhum banho tomado em sua vida se comparava àquele.

Percebendo que ela não sairia por boa vontade, Ezequiel interveio: — Sim, saia ou morrerá com seu corpo deformando. Não quer morrer deformada, quer?

— Não! — ela gritou pulando imediatamente para fora da água.

Um sussurrou aliviado ecoou pela caverna.

Apesar de estar apenas sentado ali sem fazer nada desde o momento em que se sentou, Ezequiel amassava um amontoado de lama entre suas pernas. Cecília observava aquilo chateada. Se estava tão inquieto ao ponto de brincar com terra, por que não conversava com ela?

— Está brincando de que com esse montinho de terra? — ela perguntou curiosa.

— Brincando? — Sua voz saiu incrédula. — Se parece isso para você, é exatamente o que parece.

— Está mesmo brincando? Parece estar amassando um bolo, não me faria comer isso, né?

— Posso dá-la um pouco se desejar — ele disse soltando uma risada, oferecendo em seguida uma mão cheia de lama para Cecília, que estava sentada atrás de si —, só não imaginei que teria esse tipo de gosto.

— Não, não! Só achei estranho que estivesse fazendo algo assim, é meio sem lógica, mas não temos nada para fazer mesmo. Que tal brincarmos?

Sentindo a garota pular em seu ombro, Ezequiel continuou a moldar o barro sem dar muita atenção, porém, os dentes afiados da menina morderam sua clavícula.

— Evite fazer isso quando estou ocupado.

— É sua culpa por me ignorar.

Por ser um detalhe a garota até então não havia percebido, mas o dedo mindinho de Ezequiel brilhava em um tom alaranjado incandescente. Suas mãos por inteiro buscavam a lama que escorria para os lados, e toda vez que seu mindinho tocava a lama, uma pequena fumaça se espalhava pelo ar.

“Ele está quente? Está controlando o fogo?”, Cecília se perguntou tentando entender, pois ela não via fogo, apenas a pele de Ezequiel parecia emanar calor. 

— Você é um “Vocan”.

— Não.

— É claro que é — ela afirmou —, eu estou vendo seus dedos brilharem pela alta temperatura. Pensei que seu atributo fosse a água ou o vento pela sua personalidade calma, nunca pensaria que fosse um Dominador do Fogo da Cidade de Vidro, um “Vocan”.

— Não me chame assim. — Olhando de relance para Ezequiel, Cecília percebeu descontentamento em seu rosto.

— Por quê? — ela perguntou orando para que não estivesse passando dos limites.

Considerando por um instante, Ezequiel deixa a lama de lado para explicar: — Os Vocan podem criar e manipular o fogo através de suas peles, eles usam o atributo elemental do fogo em seus corpos para isso. No meu caso, meu sangue é quente, o calor dele consegue atravessar minha pele em certas condições, é apenas isso, um truque barato.

— Oh, sei. — ela murmurou em um tom de descrença. Apesar de jovem, Cecília tinha uma habilidade muito incomum para aquele mundo, enxergar através da energia/mana, mais conhecido como elemento naquele lugar.

Fitando os dedos de Ezequiel, que voltavam a modelar a lama, ela seguiu o fluxo da energia. Linhas vermelhas se formaram no líquido pastoso em suas mãos, como veias. E cada vez que os dedos de Ezequiel o tocavam – quase que sem querer. Novas veias se formavam e se entrelaçavam dançando de forma primorosa.

A sala estava escura, o ambiente calmo, era bela como a lama se espalhava de forma lenta e satisfatória, principalmente quando moldada pelas mãos de Ezequiel. Sua forma vinha a tona aos poucos, ficava mais densa e era extremamente viciante observar. Cecília estava impressionada, tanto que mal percebeu ter abraçado o garoto pelas costas.

— Pode fechar os olhos por um instante? — ele perguntou com uma voz estranhamente mansa. Cecília não queria fazer isso, mas não pôde recusar.

Por estar em seu ombro, ela conseguiu perceber a mudança nos movimentos dos braços de Ezequiel, que agora eram mais firmes e bruscos. Às vezes parecia estar lutando contra a lama, pois seus membros enrijeciam e eram puxados.

Alguns segundos mais tarde ela recebe a permissão para abrir os olhos, e o fez. — Uau… — a voz da garota sai impressionada. A massa que agora a pouco era apenas um amontoado de lama havia se tornado uma estrutura oval do tamanho de suas duas mãos juntas. Se houvesse avestruz naquele mundo, ela o compararia com o ovo de um.

— Você… criou vida? — ela perguntou vendo que não apenas a forma exterior da lama havia mudado, mas também as veias de energia, que realmente pareciam estar pulsando agora.

— Matar uma formiga não é diferente de dar vida a ela, o processo é o mesmo, só muda a ordem que faz as coisas. Essa é minha habilidade especial.

— Qual? — Cecília perguntou sem entender.

— Trazer ordem? Fazer as coisas acontecerem? Tenho pouca certeza sobre isso também, sinto que me esqueci dessas coisas. — Um tom amargo tomou a voz de Ezequiel. — Muitas vezes meu corpo parece tomado por uma vontade que não é minha, fazer coisas que nunca quis fazer, tomar decisões que eu nunca tomaria. Apenas agora sinto estar despertando, mas… continuará próxima de mim mesmo vendo o que viu?

— Qual o problema? — Cecília questionou. — Mesmo que tenha feito algo difícil de acreditar, eu estou vendo. Devo me afastar só por causa disso?

— Seus olhos não me enganam — ele disse num tom brincalhão. — Acha que é mais difícil criar esse ovo ou saber o que está pensando?

— Ler minha mente?

— Plantar uma árvore e criar uma floresta é o mesmo, só muda a extensão do plantio.

— Para de falar dessa forma estranha! — ela disse irritada. — Vai me dizer que criar o mundo é o mesmo que construir uma casa, e só muda o tamanho?! Eu vi, tá… desde o início percebi que seu corpo não tem um pingo sequer de elemento. Você não parece ser vivo, muito menos humano, mas está vivo e é humano. Quem se importa afinal.

— Você nunca esteve errada, a verdade é que muitos se importam. Está curiosa sobre mim? — ele pergunta de forma dissimulada. A menina estava doida para saber seus segredos, mas ele provavelmente nunca os contaria. Já sabendo disso, ela se conteve e tentou começar de forma lenta.

— Até agora você não me disse quem é, como posso te chamar?

— Tanto faz, qualquer coisa serve.

— Sério mesmo? — ela perguntou mordendo o ombro de Ezequiel de forma manhosa, analisando logo em seguida o rosto dele. Ele tinha um gosto salgado, era mesmo como um humano vivo, aquilo a irritava, o que ele era? A sensação de investigar o desconhecido, desde pequena Cecília sempre teve um viés para isso.

Mas pensando bem, seria seguro ficar perto daquela pessoa? Com certeza era mais seguro que ficar com aquelas bestas lá fora, porém, Ezequiel era alguém confiável? — Estou fazendo de novo, minha mãe vai me matar… — ela disse em um suspiro.

— Fez o quê?

— Nada muito importante, mas… — Observando o rosto de Ezequiel, que agora estava focado no ovo de barro, Cecília reparou em sua face distorcida. Havia algo de diferente naquele menino se comparado com quando eles estavam na floresta.

“Seu rosto parece sério, mas não tão vilanesco quanto antes. Ele é totalmente diferente de quando sorri, parece um nobre.” Cecília riu com esse pensamento, o que chamou a atenção de Ezequiel.

— O que foi? — ele perguntou se virando para ela.

— Você parece um vilão quando está sorrindo.

— E isso é bom? — ele diz com um sorriso de malfeitor, tirando outra risada de Cecília.

Apesar de ter forçado aquele sorriso, um sentimento desconhecido para Ezequiel o deixou inquieto. Seu coração havia se acelerado, e por algum motivo sua respiração ficou lenta. Há apenas um instante ele estava bem, mas do nada ficou doente? E aquele perfume doce no ar, talvez fosse veneno?

Por um instante ele pensou que realmente estivesse envenenado, mas venenos quase não tinham efeito em seu corpo. Além disso, aquele cheiro vinha do corpo de Cecília. Eles se entreolharam. Por algum motivo havia carinho no olhar da menina. 

— Conhece a história da menina que encontrou um anjo? — Cecília pergunta tentando criar um assunto.

— É sobre uma garota salva por seu amigo de infância, que a amava, mas só conseguiu dizer isso antes de morrer para ajudá-la?

— Sim. — ela afirmou.

— Conheço não.

— Ué? — ela disse soltando uma risada. Ezequiel explicou: — Já fiquei sabendo, mas não achei interessante ao ponto de ler.

— Então posso contá-la? — Percebendo o quanto Cecília havia ficado feliz por ele não conhecer a história, Ezequiel não pôde recusar. — … ela encontra o anjo e pede que salve seu amigo. “Tenho apenas minha vida, leve-a de mim, apenas o traga de volta, nos faça estar juntos pela eternidade.”

— Essa história é tão dramática assim?

— É assim mesmo — Cecília afirmou. — Depois disso ela e seu amigo renasceram em outro mundo, eles cresceram juntos, mas eram primos.

— Oh, seria azar do destino ou uma brincadeira de mal gosto do anjo? — Ezequiel riu em voz alta se voltando ao ovo de barro. Ele o levantou na altura de sua cabeça e começou a acariciá-lo.

— Como pode dizer algo assim? — a voz da menina saiu incrédula. — Anjos nunca fariam algo para machucar alguém.

— Você que acha. — ele concluiu com zombaria: — Anjos são apenas uma raça entre uma espécie, assim como os Ghouls fazem parte da raça de monstros e os Diabos da raça dos demônios.

— Diabos não são demônios?

— Não — Ezequiel a interrompeu —, é normal achar que só existe uma espécie de demônio nesse mundo, afinal, o único tipo permitido a vir para cá são os Diabos. Eles são rápidos, precisos, conseguem voar e tem uma força incomum. Além disso, aquela cauda deles é um problema enorme.

— É exatamente isso — a menina afirmou com uma voz baixa. — Ouvi que durante o ataque na cidade, os Diabos mataram mais da metade dos guardas na muralha. O que foi aquilo, afinal?

— Eles morreram lutando, não teria valido a pena se fosse diferente disso. De qualquer forma, esse mundo estaria realmente acabado caso outras criaturas invadissem.

— E por que eles não invadem? — Cecília perguntou curiosamente. Ezequiel estava absorto no ovo de lama e nem ao menos parecia estar a ouvindo direito, mas respondeu:

— Nesse mundo veem a Noite Eterna como uma maldição, mas, na verdade, é o que protege esse mundo das criaturas de fora. Tenho poucas lembranças sobre o assunto, mas se a energia para manter essa “maldição” acabar, estamos ferrados, é por isso a barreira da cidade foi derrubada.

— O quê? — Cecília perguntou angustiada. Ela não tinha entendido bem, mas a barreira da cidade ter caído e permitido que as criaturas entrassem, deveria ter sido um acidente. Aquele menino disse ter sido derrubada?

Ela esperou ele terminar de contar, mas Ezequiel apenas colocou a mão em seu bolso esquerdo e puxou de lá banana, comendo-a com grande vontade.  — Deu uma fome. Quer?

— Não! — ela disse enfezada. — Agora não me lembro onde estava em minha história, e muito menos consigo pensar nisso agora. Por que diz que a barreira não caiu e sim foi derrubada?

— Você é uma nobre, é só ir para aquele que a patrocina e perguntar.

“O padrinho Cláudio?”, ela se questionou de forma silenciosa. “Ele é a pessoa com mais poder nessa cidade, se estivesse no campo de frente, muito provavelmente não teríamos tantas baixas. Ele precisava reerguer a barreiras, as coisas teriam sido bem pior se ele não tivesse feito isso. Então, quem foi que derrubou a barreira?”

Apesar de querer acreditar no que Ezequiel dizia, Cecília estava certa que seu padrinho era confiável. Tantos questionamentos fizeram sua cabeça doer. Deitando a cabeça no ombro de Ezequiel, ela respirou profundamente tentando não pensar em nada.

— É assim mesmo, quanto mais sabemos, pior fica. Se quiser continuar a história, estava na parte onde eles viram primos.

— Não quero, tô cansada. Devemos ter passado a noite aqui, quer dizer, nem dá para saber se é dia ou noite por causa do eclipse. O que foi aquilo, afinal? Esse evento só deveria acontecer quando algo estivesse para acontecer no mundo, todas as criaturas das sombras se tornam inimaginavelmente poderosas nele.

— Você nunca esteve errada. — Ezequiel disse com um sorriso. Se levantando, ele pegou as roupas de Cecília e as jogou para ela. — Vista-se, vou levá-la para casa.

— Mais já? Conseguiu uma forma?

— Sim, só traga as sementes das frutas que comeu e busque os bulbos que ficam escondidos nas raízes das trepadeiras.

— Okay. — Vendo Ezequiel ir para a passagem sem ela, Cecília se apressou.

Sentando na borda da piscina, ela puxou algumas raízes em busca dos bulbos. Era pouco perceptível, mas em certos lugares das raízes pequenas bolotas de cor lilás, parecidos com uma beterraba com uma longa raiz em sua ponta.

Cecília procurou o máximo que pôde, encontrou no total doze bulbos. Enchendo seus bolsos com os menores, ela ainda teve que carregar mais três em suas mãos. 

— Ele é alguém legal… — ela disse sorrindo, sua face exalava felicidade. Estava ela encantada por Ezequiel? Essa pergunta também a incomodava.

Deixando isso de lado, ela correu para a passagem depois de se aprontar. As sementes e a maioria dos bulbos estava em seus bolsos, não restava mais o que fazer ali. Era hora de ir embora.

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Olá, eu sou D. Machado!

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