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Capítulo 37 – Fragmentos de Lysandra

“Os fragmentos de uma alma são como estrelas dispersas na vastidão do universo. Cada fragmento de memória é uma peça do quebra-cabeça da vida, formando um mosaico de experiências e aprendizados.”

Fragmentos da Libertação, de Nostradamus.


O gelo estalava sob os passos de Lysandra enquanto ela se movia através da vastidão gélida da geleira. O frio cortante penetrava suas roupas, mas ela permanecia determinada, envolta em um cobertor feito da pele de um animal branco, uma única lembrança de calor em meio ao reino do gelo.

A paisagem era uma sinfonia de branco puro, uma visão interminável que se estendia até onde os olhos podiam alcançar. O silêncio intenso, interrompido apenas pelo som ocasional do vento soprando através das fendas glaciais, amplificava a solidão que envolvia aquela misteriosa mulher.

Ela se ajoelhou, onde a visão era mais ampla, atraindo o cobertor ao redor de si como um escudo contra o frio implacável. Seus olhos fixaram-se na paisagem imaculada diante dela, e uma suave melancolia envolveu seus pensamentos.

No instante em que a certeza do frio se tornou mais insuportável, Lysandra falou, mais para o ambiente do que para qualquer ser que pudesse ouvir. 

— Mesmo depois de todo esse tempo, você é meu calor, minha âncora nesta vastidão gélida.

Ela sentou-se no chão congelado, com as mãos apertando o cobertor com força. Um suspiro visível escapou de seus lábios enquanto ela mergulhava nas memórias do passado.

Então, decidida a selar sua determinação, Lysandra retirou um pequeno punhal de sua cintura. Com um gesto firme, cortou cuidadosamente os pulsos, deixando o sangue vermelho escorrer e manchar a pureza branca sob ela. A promessa que fez foi silenciosa, ecoando apenas nos recessos de sua mente.

— Com este sangue, reafirmo meu desejo de reencontrar aquele que é mais especial para mim, onde quer que ele esteja neste vasto gelo. Que este sangue, símbolo de minha determinação, trace o caminho para o reencontro.

Ela permaneceu ali, em meio ao gelo e ao frio cortante, com sua promessa ecoando no silêncio, enquanto o sangue marcava o solo como uma marca indelével de sua determinação.


Harley despertou, confuso e desorientado, uma brisa fria pairando no ar, fazendo-o questionar se havia adentrado um novo mundo através do portal ou se ainda estava imerso em algum tipo de sonho perturbador. A incerteza pairava, mas uma certeza dolorosa emergia: não era um pesadelo do qual poderia acordar ileso. Lysandra, sua leal companheira, estava morta.

Ao tocar o rosto, o jovem sentiu um líquido quente, e ao limpar com a palma da mão, compreendeu que era o sangue dela que manchava sua pele. Era uma realidade inescapável, um golpe profundo que o lançava em um cenário sombrio e implacável.

Um nó sufocante se formou em sua garganta, e Harley tentou conter as lágrimas que já havia prometido a si mesmo que não derramaria novamente. Entretanto, como não se render às lágrimas em um mundo afiado, onde cada curva da vida parecia destinada a ser cortante?

A dor era insuportável, uma tempestade emocional que ameaçava afundá-lo. Diante de mais uma derrota, a sensação de fracasso era como uma sombra que o seguia, revelando uma verdade que ele sempre queria negar: que as fugas eram apenas uma forma disfarçada de enfrentar derrotas mais profundas. 

Lysandra, uma figura misteriosa que o havia ajudado tanto, estava agora fora de seu alcance, e ele sentia a angústia da impotência. Por que ela tinha escolhido estar ao seu lado e dedicar-se a ajudá-lo de maneira tão intensa? Essa pergunta persistia, assim como a intensidade do sofrimento por alguém que, até então, era quase uma desconhecida.

Nada parecia fazer sentido, e até mesmo a percepção de seu próprio corpo tornou-se estranha. Consciente da ausência da familiaridade física, ele se sentiu pequeno e fraco. A dor emocional se entrelaçava com a confusão de sua nova existência, criando uma combinação de sentimentos desconcertantes.

Ao encarar sua própria imagem nas águas tranquilas, mais lágrimas caíram. Não eram lágrimas de tristeza, mas uma mistura de gratidão e esperança.

Harley, confrontado com sua nova e diminuta forma, mergulhou em uma espiral de pensamentos. Sua mente retrocedeu até o momento em que se viu mais jovem, e ao comparar a nova imagem com a da sua lembrança, tudo era perfeitamente igual. 

Relembrando as escolhas e caminhos que o trouxeram até ali, uma ideia ousada infiltrou-se em sua mente: teria a Adaga Arcana proporcionado uma viagem no tempo, oferecendo-lhe a chance de refazer suas decisões e evitar a trágica morte de Lysandra? O peso da possibilidade pairava sobre ele, alimentando um lampejo de esperança na escuridão de sua dor.


— Não!!!

A dura realidade se impôs, não havia espaço para alienações ou pensamentos mágicos. Harley compreendeu que nunca tinha retrocedido no tempo, por mais intensa que fosse sua vontade ou desejo. 

Uma dor profunda agitou sua mente, um turbilhão de imagens se desenrolando em sua consciência. Ao abrir os olhos, o agora menino percebeu que não estava diante de uma nova possibilidade, mas sim revivendo cenas do passado.

O cenário ao seu redor era familiar: Em meio à Floresta de Espinhos, a brisa sussurrava entre os espinhos afiados, criando um murmúrio único e tão reconhecido. 

O aroma de folhas úmidas competia com a acidez característica dos espinheiros retorcidos. Entre raízes retorcidas e galhos que se entrelaçavam como garras, Harley se encontrava novamente, enfrentando um lobo desgarrado que ameaçava uma menina misteriosa.

Quantas vezes ele revivera esse momento, uma escolha que poderia ter sido rotineira, uma fuga habitual, mas como ignorar o olhar único daquela menina? Como não se envolver quando seus olhos carregavam um pedido tão doce? Harley nunca encontrara olhos capazes de transmitir mensagens tão profundas, tocando diretamente seu coração. 

Ele costumava deparar-se com olhos que poderiam rasgar, triturar, mas nunca olhos que pediam. Olhos que não prometiam nada, mas que tinham o poder de desestabilizar um coração, especialmente um tão despreparado como o dele na juventude.

As cenas se desdobraram com uma vivacidade surpreendente. O garoto, com sua adaga reluzente, enfrentava o lobo feroz enquanto a menina observava com olhos cheios de temor e gratidão. O embate tenso e perigoso terminou com a vitória dele, mas não sem custos. Suas mãos tremiam com a adrenalina da batalha e a ansiedade de proteger uma vida inocente.

Era uma das poucas vezes que não precisou fugir de um desafio maior do que suas capacidades. A menina, ainda trêmula, aproximou-se de Harley, seus olhos expressando uma mistura de gratidão e medo. 

Ela explicou que estava sendo testada nesta floresta como parte de um rito de passagem em seu clã. A tarefa era sobreviver sozinha por três meses antes que sua mestra retornasse para levá-la de volta ao clã.

Ao longo do tempo, o agora garoto revivia momentos emocionantes com a menina. Ele a ensinava a caçar, a construir abrigos improvisados e a encontrar alimentos na floresta. Eles compartilhavam risadas, histórias e pequenos gestos de amizade que criavam um vínculo especial entre eles.

O tempo seguia seu curso implacável, no entanto, a resiliência da menina persistia inabalável. Harley, sempre que possível, escapava para o lado oeste da Floresta de Espinhos. Quando estavam juntos, pelo menos uma vez ao dia, enfrentar desafios e superar obstáculos tornava-se consideravelmente mais fácil para a garota.

À medida que os três meses chegavam ao fim, a menina sabia que nunca teria conseguido sobreviver naquele lugar inóspito de espinhos sem a ajuda do menino e ele agora sabia que tinha passado os três melhores meses de sua vida ao lado daquela menina. 

Todas as coisas têm seu fim, e os três meses chegaram ao fim. Além das mãos que relutavam em se soltar, persistia o olhar que ainda se comunicava. Um olhar de confiança, de percepção ao encontrar algo único e precioso. Um olhar que prometia um reencontro no futuro. Um olhar que sugeria a possibilidade de estender esses três meses por um tempo muito maior.


No redemoinho das memórias entrelaçadas, Harley se deparou com uma nova lembrança. O som gélido da risada de Romanov ecoava novamente em seus ouvidos, uma sombra demoníaca aparecendo instantaneamente e a espada perfurando as costas da misteriosa mulher. Sangue. Muito sangue. E o olhar. 

As emoções fluíam como um turbilhão de sentimentos. Harley revivia o último olhar de Lysandra antes de sua morte, e nesse redemoinho de memórias, encontrou algo extraordinário. 

Um vislumbre, uma conexão profunda que transcendia o tempo. Era o mesmo olhar que ele buscava desde a infância, a promessa que fizera a si mesmo de encontrar aquele olhar único. Era como se, ao enfrentar a trágica perda de Lysandra, tivesse finalmente encontrado a resposta para uma busca que achou que duraria toda a sua vida.

Era ela. Ele a encontrou, mas não a reconheceu imediatamente. O tempo e a dor, agentes implacáveis, haviam esculpido novos contornos no rosto que ele tanto ansiava reter na memória. Quantas vezes se pegou imaginando como teria ficado o seu rosto no futuro. E agora ele sabia. 

A verdade maior, porém, estava na revelação de que, não a encontrou imediatamente porque desde aquela despedida entre eles na infância, ele se fechou para outros olhares. Durante tanto tempo, essa promessa feita por meio de olhos acertados foi deixada de lado, uma negligência que agora o assombrava. 

O peso da vergonha por não ter procurado ativamente cumprir sua promessa contrastava com a dura realidade de que, agora, o tempo, senhor inescrupuloso, tornava qualquer esforço fútil. 

A morte era uma sentença irrevogável, uma verdade que agora pesava sobre seus ombros enquanto encarava a lembrança do rosto alterado pela passagem inexorável do tempo e da tragédia. Novamente só lhe restava lembranças e o definitivo que novamente não pode ser mudado. 

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Olá, eu sou Val Ferri Sant. Ana!

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