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Aviso do autor

O capítulo era para ser dividido em duas partes, porém, a segunda parte não foi lançada, o que acabou perdendo a ordem dos acontecimentos. Por isso juntei os dois capítulos em um só, tornando-o um capítulo quebrado em relação à quantidade de palavras.

Peço perdão, foi um erro meu.

De qualquer forma, tenham uma boa leitura.

— — — —

Depois de quase nove horas de viagem, chegamos a Hill City, uma pequena cidade no condado de Pennington, Dakota do Sul. A viagem mostrou a imensidão e o isolamento do lugar, o panorama emergente revelou uma sociedade enraizada em sua própria peculiaridade, afastada do barulho e da agitação da metrópole e envolta em uma estranha quietude.

A cidade, por outro lado, parecia ter caído em um silêncio sepulcral. As ruas vazias e os prédios abandonados evocavam uma sensação de desesperança. Não havia vida nas esquinas, e nem mesmo uma brisa soprava pelas ruas vazias. Era como se Hill City estivesse adormecida, despreocupada com a passagem do tempo, um silêncio que criava a impressão de uma cidade presa entre a vida e a inatividade.

Raven estacionou o carro em uma rua estreita próxima ao Hill City Coffee, um estabelecimento, à primeira vista, solitário em meio à tranquilidade da cidade.

— Lembrem-se, evitem problemas e estragos desnecessários. Não quero desperdiçar recursos da organização com reparos nesta cidade. — alertou ela. — E, acima de tudo, não devemos atrair a atenção dos superiores.

Mandy lançou um olhar significativo para Lewis, que estava ao seu lado, antes de responder:

— Ouviu isso?

— Fecha essa boca.

A resposta de Lewis era uma mescla esperada de irritação e desdém.

Eu fui o primeiro a sair do carro, seguido pelos dois. 

Uma sensação de paz e conforto era o que permeava o ar da cidade. Cidades do interior, como Hill City, geralmente ofereciam essa atmosfera serena, de onde a rotina diária se desenrolava sem grandes transtornos. 

Mikael já estava desafivelando o cinto de segurança. Antes que pudesse sair, Raven estendeu a mão e pegou seu braço. 

— Espera. Quero que me responda uma coisa.

— Ah… — Suas sobrancelhas estavam ligeiramente franzidas. — O quê?

— O que você vê de tão especial nele? O Krynt deveria estar morto. Nós dois sabemos disso.

— Tenho motivos para acreditar que há algo muito importante dentro dele. — respondeu, escolhendo as palavras cuidadosamente. — Ele é como um inimigo natural para os Mephistos. Isso é algo que temos a nosso favor, uma qualidade especial que pode ser vantajosa. É tão poderoso que pode…

Sua voz foi sumindo, perdido na contemplação do poder desconhecido que eles poderiam ter encontrado.

Raven inclinou a cabeça enquanto esperava que prosseguisse.

— Que pode…?

— Talvez eu esteja enganado. Parece mais provável que o Krynt se entregue àquela coisa.

No entanto, suas palavras eram apenas um vislumbre do que ele realmente sabia. Mikael ainda mantinha um véu de segredo sobre suas intenções verdadeiras.

— Você está sugerindo que esse Meio-Mephisto possui um poder latente que poderia ser despertado? — questionou, mais intrigada.

Mikael assentiu lentamente, seus olhos fixos em algum ponto distante enquanto ponderava sobre a resposta.

— É, exatamente. Uma capacidade oculta que, se for compreendida e cultivada da maneira certa, pode trazer mudanças significativas.

Raven franziu mais ainda o cenho por tentar assimilar a informação.

— E se ele não for devidamente orientado? O que aconteceria então?

— Se ele não encontrar o caminho certo… — Ele suspirou, uma expressão apreensiva tomando conta de seu rosto. — Há uma forte probabilidade de que ele se entregue àquilo, como eu disse. E nesse caso, as consequências seriam… devastadoras.

Raven balançou a cabeça, apesar de um tanto incrédula, ela apenas concordou. 

— Espero que isso não acabe nos tornando alimento para Mephisto. Eles são Mephistos, Mikael, e merecem nada menos que a morte. Aquele garoto tirou a vida de vários inocentes.

— Você e a vice-líder estão na mesma página, Raven. — Sorriu fracamente. — Confie em mim, de jeito nenhum eu aceitaria um assassino pelo valor nominal.

— Certeza sobre isso? 

— Absoluta. Ele é uma aposta, mas temos que correr. O Krynt é minha janela de um minuto para derrubar aquela monstruosidade, minha única chance antes que a exaustão me tome.

Raven ficou em silêncio, sua barragem habitual de advertências substituída por um olhar contemplativo.

Finalmente, ela quebrou o silêncio com uma pergunta, sua voz mais suave que o normal. 

— Você realmente acredita que há alguma esperança para uma criatura distorcida?

Essa pergunta ressoou dentro dele, sensibilizando-o profundamente. Mesmo assim, respondeu:

— Eu acredito… — disse lentamente, com a voz baixa. — … que mesmo os cantos mais sombrios de um coração humano podem conter o potencial de mudança. Até mesmo o de Krynt.

O sol de verão lançava um brilho dourado sobre a cidade, enquanto o vento carregava consigo a promessa de descobertas e desafios que estavam por vir. 

Mikael sabia que as respostas que buscava eram tão esquivas quanto a brisa que soprava, mas ele estava determinado a desvendar quaisquer mistérios.

Enquanto descia do carro, uma sensação de leveza e liberdade o envolveu. Ele aproveitou um momento para respirar o ar puro e revigorante da cidade. Era uma mudança bem-vinda em relação aos corredores frios e estéreis das instalações da organização. 

A atmosfera da cidade era convidativa, deixando para trás as preocupações que o assombravam.

— Bem, de agora em diante, não tenho ideia do que pode acontecer. Vasculhem a cidade em busca de pistas que revelem rastros do Mephisto. Se encontrá-lo em carne e osso, não o deixe escapar. — instruiu.

Cada um de nós respondemos com o mesmo sinal de aprovação: jóia.

— O resto é por minha conta, apenas certifiquem que ele não fuja. Eu vou indo, se cuidem.

Mikael dispensou-se para um local arbitrário com um aceno de cabeça. 

— Ouviram? Tomem cuidado, pessoal, sério. — alertou Mandy.

— Quem devia ter cuidado era o Krynt. — disse Lewis, me encarando de lado.

— Só porque sou novato aqui? 

— Também, mas não é só por isso. — Apontou o dedo na minha direção. — Essa coisa dentro de você é perigosa. Por isso acho melhor você ficar por perto.

— É, Krynt, eu concordo. — Mandy me lançou um olhar significativo. — Vem com a gente, é mais seguro.

— Nah. Sem chance.

Coloquei minhas mãos nos bolsos enquanto seguia em frente, desconsiderando o que acontecia ao meu redor.

— Vou dar uma volta também. Eu posso lidar com qualquer coisa. — Olhei para eles de relance, com um sorriso provocador. — Principalmente com vocês.

Minha despedida tinha um tom desafiador. Em outras palavras, eu estava determinado a ficar sozinho. No entanto, tinha em mente que ninguém me deixaria sair voluntariamente. 

Mandy voltou para Raven, que ainda estava no carro com o celular na mão, e perguntou:

— Ei, ei, olha lá, ele tá saindo. O que a gente faz?

Raven, calma e autoritária, respondeu:

— Está tudo bem. Se algo der errado, a culpa é do Mikael.

Ela manteve o celular na mão, mas fez um gesto tranquilizador com a outra, como se estivesse minimizando a situação.

Mandy, por outro lado, ficava inquieta, mexendo nos cabelos e olhando ao redor nervosamente. Apesar disso, assentiu, confiante na resposta dela.

— Ah, quando eu pegar aquele idiota… — Lewis disse, deixando transparecer sua raiva.

— Não sou fã dele também. Mas, enquanto isso, vamos andar pela cidade.

— Você ao menos conhece os lugares daqui? 

A verdade era que ambos sabiam muito pouco sobre Hill City. 

Mandy parecia perplexa por um momento, mas rapidamente respondeu com otimismo:

— Ouvi dizer que tem um museu, algumas lanchonetes e… Não importa! Só vem comigo, ficar parado aqui é um tédio.

— Não seja tão idiota assim. Estamos em uma missão séria.

— Eu sei, burro. Sei o que tô fazendo.

— Se algo der errado, a culpa será sua, entendeu?

Mandy começou a rir, achando o pessimismo de Lewis um tanto cômico.

— Caramba, você é muito dramático! Anda logo, para de enrolar.

Lewis soltou um suspiro, erguendo as mãos em sinal de rendição.

— Tá bom, eu vou. Só porque é necessário, senão eu ficaria aqui só de guarda.

— Guarda? Pra quê? — Ela lhe olhou com um ar de deboche, balançando a cabeça. — Se é assim, me proteja, então. Pode ser?

Sorriu e piscou para ele, acenando com as mãos para que seguissem.

Assim, os dois embarcaram na excursão que os libertaria do tédio, entrando nas ruas da cidade com uma sensação constante de expectativa.

O acesso à Internet era quase inexistente, deixando apenas Mikael e Raven com seus celulares, à disposição para informar qualquer descoberta pertinente.


The City of Eugene, sede da agência, 15h:35.

A vice-líder estava envolvida em uma conversa telefônica com o líder da organização na privacidade de seu escritório. A ênfase de uma questão problemática pesava na atmosfera, onde antes havia confiança e controle.

Do outro lado da linha, o líder participava de uma reunião conciliatória com os diretores das escolas de Boston, palco da recente tragédia. O murmúrio distante de pessoas conversando ecoava pela linha. 

— Então? — A voz dela soou através da linha, carregando a expectativa de respostas.

[É um pesadelo de relações públicas. Aqueles corações sangrentos na mídia estão tendo um dia de campo. ‘Segurança escolar sob fogo’, ‘Outro inocente perdido’. Eles estão praticamente pedindo nossas cabeças em uma bandeja de prata.]

As palavras dele carregavam um misto de frustração e impotência. Ele sabia que nem sempre podia controlar todos os desdobramentos das missões e dos eventos, mesmo com os recursos e habilidades que a agência dispunha. 

— Olha, essa coisa toda tem sido uma confusão desde o início. 

[Ele estragou tudo, pura e simplesmente.] 

— Mas não podemos nos permitir demonstrar fraqueza. Precisamos demonstrar força e dedicação. É nosso dever, não é?

Estes eram os mantras que vendiam ao público, a narrativa cuidadosamente elaborada que mascarava a realidade confusa das suas operações. A realidade onde vidas, algumas inocentes, outras não, eram meros peões sacrificados num tabuleiro de xadrez sem fim.

[É fácil para você dizer. Não é você quem está enfrentando esses membros hipócritas do conselho escolar.]

O silêncio que se estendeu entre eles dizia muito. Os anos que ele passou navegando nas águas traiçoeiras da diplomacia norte-americana, as escolhas difíceis feitas nas sombras e o peso da responsabilidade que acompanhava o exercício de um poder tão imenso.

[Escute. Não podemos permitir nenhum vazamento. A identidade dele permanece enterrada. Essa coisa toda será varrida para debaixo do tapete. Vamos distorcer, minimizar. Sempre fizemos isso.]

A vice soltou um longo suspiro, o peso da situação caindo sobre seus ombros. 

— Sempre. — repetiu, a palavra desprovida de esperança, uma aceitação cansada do ciclo interminável de sigilo e manipulação que era o verdadeiro custo da força em seu mundo. — O que você está fazendo agora?

[Estamos sendo responsabilizados pelo atraso na intervenção. Quando chegamos ao local, já havia várias vítimas, e eles presumiram que tudo foi premeditado. Vim pessoalmente para esclarecer qualquer mal-entendido.]

A complexidade da situação transparecia em suas palavras. A agência normalmente era eficaz em suas ações, mas algumas situações eram incontroláveis devido a fatores externos e imprevisíveis.

A mulher esfregou a ponta do nariz, a dor se espalhando pelas têmporas. 

— Sinceramente, não podemos continuar varrendo as coisas para debaixo do tapete. Um dia, o tapete não será grande o suficiente.

[Não temos escolha. A segurança nacional não é um concurso de popularidade. Às vezes, é necessário fazer sacrifícios.]

Mesmo que estivesse certo, o custo humano, os danos colaterais pareciam mais insuportáveis ​​a cada incidente que passava.

— E as famílias? A mídia pode esquecer, mas não vai.

[Deixe isso comigo. Assistência financeira discreta, aconselhamento de luto… nós cuidaremos disso. Internamente, é claro.]

Mais uma vez, ela suspirou. Esse era o preço que pagavam pela ilusão de controle, pela imagem que criavam para o público. Os marionetistas eram eles, puxando os fios nas sombras, e a verdade, como um fantasma inquieto, estava sempre à espreita, escondida.

— Me mantenha informada. E, Arthur…

[Sim?]

— Tente antecipar esses problemas da próxima vez. Não podemos permitir outro desastre de relações públicas.

Uma risada sardônica veio dele. 

[É sempre um prazer trabalhar com você, Darcy.]

— Da mesma forma. — disse, desligando o telefone. 

Ela se recostou em sua cadeira, deixando-se envolver pelos pensamentos que percorriam a intrincada teia de complexidades e responsabilidades que sua posição exigia.

Com um gesto decidido, Darcy estendeu a mão e pegou uma caixa de cigarros da prateleira próxima. 

O som do deslize da tampa ecoou suavemente pelo escritório. 

Com cuidado, retirou um isqueiro com zíper do bolso de sua calça. 

Enquanto o acendia, a chama crepitante criou um brilho etéreo que parecia iluminar seus pensamentos. 

Aproximando o cigarro dos lábios, inclinou-se em direção à chama e acendeu a ponta com um movimento preciso. 

A fumaça ondulou e subiu, dissipando-se gradualmente no ar, como se estivesse levando consigo um fragmento do peso que carregava em seus ombros.

— Para compreender a criatura que habita dentro dele, talvez nossa única opção seja permitir que ele viva. — murmurou para si, mesclando uma aura intrigante de incerteza. — Ah, você tem alguma pista a respeito…

Seus olhos deixaram o monitor do computador, desviando para os formulários digitais que exibiam meticulosamente informações detalhadas de todos os Mephistos capturados.

Ao lado de cada perfil, um selo virtual de Licença de Morte estava carimbado, uma medida necessária, um protocolo escuso.

 — … Mikael?

Seu olhar se aprofundou em um formulário específico, refletindo o conflito interno que ela estava enfrentando, um quebra-cabeça que ela estava tentando montar peça por peça.

— Ele não pode sobreviver por muito tempo, não com isso dentro dele. Mas ainda assim, há algo que me incomoda. — Suspirou. — Maldição…

A palma de sua mão direita pressionou contra a testa, como se buscasse conter as tensões que fervilhavam lá dentro. 

O caminho para a verdade muitas vezes era tortuoso, cheio de ideias conflitantes, planos quebrados, erros cometidos e desafios imprevistos.

 A intensidade de seu trabalho incansável revelava a fragilidade que se escondia sob sua fachada implacável.

— Só quero que isso termine logo.

Uma vez mais, ela liberou a fumaça do cigarro entre os lábios, deixando-a dissipar-se no ar como se estivesse expulsando parte do peso que carregava consigo. 

O ato de fumar se tornava um breve refúgio, um momento de alívio em meio à agitação interna de sua mente.

— E um pouco de descanso também. — murmurou, um anseio sincero que frequentemente se perdia em meio às urgências e responsabilidades que ocupavam sua vida.

Ela continuou sua busca incessante por soluções enquanto era engolfada em seu conflito interno à medida que se cercava pela fumaça espessa presente na sala. Ela estava empenhada em decifrar os impasses ao seu redor e encontrar uma solução.


O ponto exato designado, onde o carro estava estacionado como um espectador silencioso Raven encontrava-se mergulhada em um oceano de pensamentos que rivalizavam com as cores do céu que a envolvia. 

Ela estava reclinada sobre o capô, seus braços cruzados sob o peito.

— Como é possível esquecer… — sussurrou, as palavras escapando de seus lábios com um peso que só ela entendia.

Um avião cruzava o céu, sua trajetória cortando as nuvens em uma dança efêmera, e os olhos de Raven seguiram o rastro luminoso como se fossem faróis em busca de respostas nas alturas inatingíveis.

Entretanto, o espetáculo celeste e aeronave não eram as únicas visões que povoavam a mente de Raven. Um turbilhão de imagens do passado, ora belas, ora perturbadoras, ecoavam em sua mente como fantasmas de uma história já vivida.

Se o destino não tivesse pregado essa peça maldita… — disse, um lamento que parecia vir de um lugar profundo dentro de si. — Talvez eu não estivesse aqui, perdida entre as dobras desse inferno.

A tragédia, um espectro que se escondia nas cortinas de sua mente, permanecia uma presença constante. Mesmo aos vinte e um anos de idade, o peso ameaçava dominá-la. 

A ideia de sua realidade atual se tornar inextricavelmente ligada àquela noite, uma noite para sempre gravada em tons de vermelho e desespero, causou um arrepio em sua espinha. 

— Porque o céu naquela época era mais azul, disso eu me lembro bem.  

Os pensamentos dela vagavam pelo passado. Cada fragmento era um fragmento de uma vida destruída, uma vida que poderia ter sido tão diferente.

Somente aqueles que experimentaram o peso do destino poderiam compreender a determinação e a força de aço que eram vistas em seus olhos, que agora estavam contraídos devido à intensidade das lembranças.

De qualquer forma, apertou os olhos por um momento, como se pudesse afastar as lembranças indesejadas, buscando controlar a ansiedade que ameaçava dominá-la.

— Não sei ao certo o que posso fazer aqui. Ficar parada e esperar não é o meu estilo.

Ela se desprendeu do capô e pôs-se de pé novamente. Seu olhar percorreu o cenário ao seu redor, explorando as possibilidades.

— Um café, talvez? — perguntou-se, como se buscasse uma resposta de si mesma. — Hill City Coffe. Acho que é o lugar mais próximo para passar o tempo.

Ela contemplou o letreiro do lugar, ponderando se deveria ou não ceder à tentação de um breve momento de distração.

— Mas talvez não seja uma boa ideia.

Um sorriso irônico brincou em seus lábios, revelando o autodomínio que ela impunha a si própria, mesmo em meio às tentações. No entanto, suas tentativas de distração não eram suficientes para afastar as memórias persistentes. 

Com um movimento decidido, ela tirou o celular reserva do bolso de sua calça, ligando a tela para verificar o horário.

— 02h32. Melhor agir.

Com essa decisão, guardara o celular, desprendendo-se do capô do carro, se preparando para a tarefa que a aguardava. 

Seus passos a guiavam rumo à missão que lhe fora designada, disposta a resolver os impasses que envolviam o dilema que a organização lhe confiara.

Embora estivesse ensolarado o dia, uma sensação de inquietação pairava sobre Raven enquanto andava pelas vazias ruas da cidade. O fedor de decomposição atingiu, uma doçura espessa e enjoativa. 

Um pressentimento incômodo a impelia a continuar caminhando, como se algo a esperasse na próxima esquina.

Isso a levou até um beco, uma passagem estreita entre dois prédios de tijolos em ruínas, onde o sol da tarde não ousava penetrar. 

— Olha só.

Havia um corpo esparramado ao lado de uma lata de lixo enferrujada, cheia de embalagens de fast food e garrafas de cerveja quebradas. 

O homem, ou o que restou dele, estava contorcido em uma posição não natural. Seu rosto, no entanto, era irreconhecível. A imagem era um mosaico de ossos quebrados e carne desfiada, semelhante a uma caricatura da humanidade. 

Um olho, branco leitoso e protuberante, permanecia olhando fixamente para a tinta descascada na parede adjacente. O outro simplesmente desaparecera, substituído por uma abertura que expunha um pedaço brilhante de crânio. 

Uma única mão mutilada, projetando-se da piscina como uma garra grotesca, ostentava um anel de prata barato incrustado com uma pedra turquesa lascada. Foi a única sugestão, um sussurro contra a cacofonia da violência, da pessoa que foi tão brutalmente silenciada.

Moscas, pretas e gordas, zumbiam em torno da ferida, e seu zumbido persistente era o único som que ousava quebrar o silêncio opressivo.

— Ele tem seus truques.


Pelos meandros urbanos, podia me encontrar perdido involuntariamente, uma vítima da encruzilhada das possibilidades. 

A noção de normalidade, muitas vezes, se desfaz como neblina matinal, e a tontura se insinuava, como se a própria cidade, viva e inquieta, brincasse de distorcer a realidade. 

O mesmo se aplica às pessoas intrigantes, afinal, por detrás de suas máscaras, existia algo misterioso. 

Pelo menos foi o que tenho notado desde que me deparei com um deles.

— E aí, licença, sou funcionário da U.E.C. Então, uh, será que você pode me dizer como anda por aqui? Se tá tranquilo e tal.

Um silêncio profundo foi a resposta que colhi. 

Cada detalhe desse indivíduo era uma esquisitice à parte, desde suas atitudes peculiares até sua aparência que parecia ter sido esculpida pelo próprio mistério; havia uma estranheza quase sobrenatural em sua maneira de existir, como se estivesse acima das regras que governam o cotidiano comum. 

Os olhos dele, sombras profundas em meio a um rosto pálido e inexpressivo, pareciam conter segredos que o mundo jamais ousaria desvendar.

— Tá bom…

Um calafrio percorreu minha espinha quando finalmente me dei conta de que estava olhando para muito mais do que um simples indivíduo. Era como se ele fosse a personificação de uma esfera oculta da realidade, uma dimensão que poucos ousam explorar. 

Assim, dei a partida para outro lugar da cidade.

Pelo que entendi, essa cidade estava diante da colisão de duas realidades diferentes. 

Senti uma mistura de curiosidade e apreensão enquanto estava no desconhecido. 

Esse não foi um dia típico – em vez disso, foi uma revelação, uma visão das camadas da vida que estavam ocultas.

O caminho para uma solução geralmente é árduo quando se tem de enfrentar um problema. Viajar sem um plano pode ser tão arriscado quanto fugir de um assaltante. 

Para aqueles que desejam sobreviver para viver uma vida autêntica, eles não têm escolha a não ser se perder para se encontrar, existir no limite sem ver que isso é impossível.

— Hm?

À beira de um parque, a paleta de cores urbanas deu lugar ao verde sereno. No balanço, um garoto estava lá, solitário em sua busca por diversão. 

Ou, pelo menos, era isso que eu conseguia supor.

— Ei! 

Minha voz cortou o ar como um chamado, ecoando entre os espaços vazios.

Num átimo, quando me viu, levantou-se e partiu em disparada.

— Hã? Espere, espere aí!

O desejo de alcançá-lo se transformou em movimento, enquanto eu começava a perseguição frenética.

As passadas nos conduziram através de um cenário onde árvores se entrelaçavam, criando sombras emaranhadas. 

A criança desviou da rua para uma passagem entre duas casas. 

O instinto aguçado me fez girar à esquerda, desviando habilmente de uma fruta que ele arremessara em minha direção.

— Sério? — murmurei, um sorriso leve dançando nos cantos dos meus lábios diante da sua audácia.

Mas a fruta, uma manobra de distração, me fez desviar o olhar do garoto, que agora estava na rua, dobrando à direita. 

Sem perder tempo, dei um passo para trás e retomei a perseguição, contornando a casa com uma precisão calculada. 

Como um orquestrador maestro, sabia que este era apenas o início do plano que já estava há muito escrito.

— Pegue–

No entanto, o que se desdobrou diante de mim era um turbilhão de eventos que desafiava a própria natureza das minhas expectativas. 

A sensação gélida de um metal contra a minha palma revelou um segredo sombrio: ele carregava consigo uma arma. 

Mas antes que minha mente pudesse compreender a verdade, uma dor lancinante rasgou o meu corpo. 

Uma lâmina afiada e impiedosa havia perfurado meu estômago, uma agressão súbita e desumana que despedaçou qualquer vestígio de normalidade.

Ele, atônito com o desfecho trágico, retrocedeu em um movimento desajeitado, abandonando o objeto.

— Ah… porra… — As palavras escaparam dos meus lábios em meio a um gemido rouco quando meu corpo se prostrou de joelhos sobre o solo áspero. — … Por que cê tem isso…?

Minha voz tremeu em consonância com as convulsões do meu corpo, enquanto me debatia com as ondas da agonia que pareciam não ter fim.

— D-desculpe… hã… foi sem querer.

— Hah… é?

Apesar do furor da dor, com as mãos trêmulas, segurei o cabo da lâmina que perfurara meu estômago. 

O ato, tão ousado quanto insensato, provocou um grito rasgado da minha garganta e me fez morder meus próprios lábios, como se buscasse suportar a dor física ao sacrificar outra forma de sofrimento.

Um gemido abafado escapou quando, com um esforço hercúleo, puxei a lâmina de volta. 

Era uma sensação dilacerante, como se cada centímetro de avanço da lâmina dentro de mim deixasse uma trilha de dor insuportável. 

Meu corpo arqueou sob o impacto, e eu pressionei meus lábios juntos outra vez, uma tentativa inútil de conter os sons agonizantes que escapavam.

— Nngh… merda…

— Ah, não… de novo não…

A voz do garoto soava frágil, quase quebrada, carregada de remorso e incredulidade perante o que seus próprios atos haviam desencadeado.

O cabo da faca estava úmido com o meu próprio sangue, uma lembrança cruel da ferida que havia se aberto em mim. 

O sangue vermelho-vivo escorria entre os meus dedos, manchando o solo ao meu redor. 

Com um esforço titânico, pressionei a minha mão contra a ferida, como se a própria pressão pudesse conter a hemorragia que ameaçava me levar embora.

— … Desculpe… E-eu… uh… preciso ir.

Enquanto se voltava para partir, imediatamente o agarrei pelo braço.

— Espera um instante, não vá embora assim.

O movimento dele congelou, sua figura esboçando uma interrogação silenciosa, uma expressão de surpresa misturada a um rastro de apreensão.

— H-hã?

— Agora cê fica aqui, não quero mais correr.

Minha mão deixou a ferida que, para meu assombro, estava cicatrizada, sem qualquer vestígio da lâmina que momentos antes havia me trespassado. 

Era como se a mesma força que havia restaurado meus ossos quebrados no dia anterior também tivesse atuado para reparar o dano interno que o objeto provocara.

A criança diante de mim exibia uma mistura de perplexidade e fascinação, um olhar que denunciava a maravilha de testemunhar algo que desafiava todas as leis do mundo conhecido.

— Melhor assim. 

Minha voz refletia uma calma que mascarava a tempestade de emoções que me invadia.

As feições deste eram contorcidas entre o choque e a inquietação. 

Era natural que a facilidade com que um ferimento que poderia ter sido fatal fora reparado o deixasse preocupado.

— V-você não… como…

— O quê? — A resposta era enigmática, uma mescla de distância e curiosidade. — Veja bem, poderia ter sido meu fim, e tô puto por isso ainda. Mas a questão é: por que você carrega uma faca? Que tipo de problema cê tem na cabeça?

Ele hesitou por um momento, um olhar trêmulo de alguém que estava prestes a revelar um segredo obscuro.

— Não… — Ele começou a recuar lentamente. — … Não é nada. Eu só… hã… quero me manter afastado.

Percebendo que ele estava escapando, reagi instintivamente, agarrando a gola de sua camisa com força, como se essa ação pudesse prender o destino que ele estava tentando evitar.

— Tudo bem se você não quiser me contar. — O tom de voz estava carregado com uma ameaça controlada. — Posso te arrancar a resposta no murro.

A pressão nas minhas palavras era uma promessa velada de que eu estava disposto a ir aos extremos para descobrir o que ele estava escondendo.

Em situações como essa, quando nada vem fácil, o que sobra é agir sob pressão, acreditando que só assim as verdades emergiriam. 

Com seu corpo trêmulo e seus olhos arregalados de medo, finalmente cedeu, sua voz ecoando como um lamento.

— Eu… matei meus pais!

O que ele disse caiu sobre mim como uma bomba, uma confissão chocante que reverberou em minha mente. 

Fiquei paralisado, incapaz de formular uma resposta imediata. 

A gravidade do que ele havia admitido era avassaladora, uma revelação que abalava as bases da minha compreensão da situação.

Hein?

A confissão dele era tão chocante que eu mal conseguia articular uma resposta coerente.

— Me desculpa, me desculpa, me desculpa…

As palavras foram repetidas como um mantra, ecoando como um pedido de redenção.

Antes que começasse a explicar, sua voz misturou-se de tristeza e remorso, abrindo um olho lentamente, como se estivesse testando minha reação. 

— Apareceu um homem e–

— Como assim, cacete? Que história mal contada é essa?!

A raiva se insinuou à medida que minha incredulidade deu lugar a uma indignação justificada. Era quase impossível assimilar totalmente o que ele havia acabado de revelar.

Em um impulso desesperado, eu estava prestes a ceder à vontade de agredi-lo com os punhos cerrados, mas algo dentro de mim hesitou.

— Espera! —  gritou, desesperado. 

Seus olhos estavam quase lacrimejantes implorando por misericórdia. 

— Por favor, não me machuque! Me deixa explicar! Por favor!

A cena diante de mim era um retrato do desespero humano, um reflexo da fragilidade que todos nós carregamos, mesmo aqueles que cometem atos impensáveis.

O soltei, e ele caiu de volta para o chão.

— Tudo bem, vou ouvir o que você tem a dizer. — confirmei em tom contido, uma concessão a uma conversa necessária. — Mas se estiver mentindo, vou te encher de tapa.

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