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Capítulo 19 – O Crepúsculo da Normalidade

O relógio passava das 23h, como Mikael viu em seu celular. 

— Não tenho mais tempo.

Seu polegar percorreu o aplicativo de bloco de notas aberto, uma lista selecionada de destinos turísticos zombando dele na tela: Monte Rushmore, ArtForms Gallery, Prairie Berry Winery. Todas as coisas que um visitante normal poderia gostar. 

— Vamos para a caçada.

À noite, a escuridão, antes contida pelos últimos lampejos do crepúsculo, envolvia a cidade. Mikael, moldado por noites intermináveis de insônia e treinamento incansável, personificava a vigilância cautelosa da cidade.

Seu rosto, gravado com a determinação calma de alguém que conheceu a exaustão incessante, não dava indícios de uma cobiça monstruosa que se escondia nas sombras.

O vasto céu acima, uma tela escura salpicada de estrelas, carregava um terror único. Era um silêncio cheio de medo, um vazio que se abatia sobre todos. Era a quietude antes da tempestade, a respiração suspensa antes que a mandíbula da fera se abrisse, revelando uma variedade assustadora de dentes afiados e garras mortais, cada um brilhando com uma fome de eras passadas.

Para Mikael e para os que estavam em vigília com ele, os Mephistos representavam uma ameaça constante e oculta. Essas criaturas eram a essência das sombras, alterando-se e fundindo-se com a escuridão ao seu redor. Eram como murmúrios noturnos, elusivos e com formas que se entrelaçavam ao caos imperceptivelmente.

A cena urbana à frente deles parecia uma fotografia paralisada no tempo. Veículos parados criavam uma barreira desordenada na estrada. Luzes teimosas piscavam em algumas janelas, os últimos lampejos de civilização desafiando a extensão da noite. O único som que perturbava o silêncio era o eco cadenciado das botas de Mikael na calçada irregular.

Um vislumbre de movimento capturou sua atenção. Sob um poste de luz isolado, uma mulher permanecia de guarda, envolta em um halo de luz amarela enfermiça. A mão de Mikael ergueu-se instintivamente, não para acenar, mas num gesto de calma precaução. Ele avançou com passos medidos, seus sentidos aguçados tanto para a possível ameaça quanto para um tênue sinal de conexão humana.

— Tudo bem contigo? Deve ser insônia para você estar acordada até agora. É um pouco arriscado.

Ela permaneceu obstinadamente virada de costas, uma estátua iluminada pela luz fraca. Mikael hesitou, enquanto o silêncio se estendia entre eles. Então, com um movimento lento e compassado, ele se moveu para frente de forma a encará-la completamente.

— Ser ignorado desse jeito dói bastante.

Ele notou uma sombra caindo sobre seu rosto – uma cortina de seu próprio cabelo, obscurecendo sua expressão. Inclinou-se o corpo ligeiramente, permitindo que a pouca iluminação incidisse diretamente sobre o emblema. Era o distintivo de Agente de Campo da Classe Veterano.

— Sou da Unidade Expedicionária de Caça. — começou, com a voz baixa e comedida. — Tô aqui para encontrar uma solução. Qualquer informação que você possa me dar sobre o que tenha visto será de grande ajuda. 

Mas este encontro, como tantos outros, não produziu respostas concretas. A resposta da mulher, quando veio, foi um sussurro arrepiante:

— O céu e a terra logo estarão envoltos em trevas, e a lua será tingida de sangue.

A decepção o consumiu. Esta não foi a primeira vez que suas perguntas cuidadosamente formuladas foram recebidas com pronunciamentos tão confusos. A cidade parecia estar repleta desses indivíduos, agarrados a uma esperança que transcendia a lógica.

— Outro que acredita nisso. — murmurou, um toque de frustração colorindo sua voz. 

Uma aura misteriosa envolvia o caminho de Mikael pela rua. Escassos segredos pertenciam à residência semi-sombreada diante dele.

Sombras rodopiantes ondulavam nas paredes, lançadas pela luz trêmula que entrava pela porta entreaberta, tecendo padrões que aludiam a um acontecimento antigo e negligenciado.

Uma suave brisa noturna soprava pela entrada, trazendo um leve toque de lástima, como se a casa estivesse respirando em um silêncio reflexivo. Mikael estava ciente do ambiente carregado, um fascínio sombrio que despertou sua curiosidade profissional.

— Tem coisa escondida por aqui.

As manchas de sangue no umbral sugeriam uma entrada tumultuada do exterior para o interior.

Mesmo intrigado, Mikael adentrou o local, embora a escuridão escondesse os detalhes.

Ele avançou com cautela, alerta a qualquer surpresa, atento ao ranger das tábuas sob seus pés enquanto vasculhava o local.

— E se tiver algo escondido, vai se arrepender de ter me escolhido como visitante.

A luz fraca da lua não era suficiente para distinguir todos os pormenores, então ele procurou um interruptor e, com um pouco de sorte, encontrou-o na sala de estar, banhando o espaço com luz artificial.

O lugar estava uma bagunça, com móveis revirados e cobertos de teias de aranha. Através da sujeira das janelas, um facho luminoso do luar entrava, lançando um brilho fantasmagórico sobre o piso coberto de poeira. Mas foi o cheiro que mais agrediu seus sentidos. Era uma mistura de elementos: madeira mofada e apodrecida, um odor que contraía seu estômago e uma doçura fraca a nauseante que sugeria algo muito pior. Mikael franziu a testa, murmurando palavras em um grunhido de nojo:

— Cacete, isso tá insuportável.

Uma faixa carmesim manchava o chão com um respingo mórbido de tinta contra o pano de fundo do abandono. Serpenteava pelo grande hall de entrada, conduzindo seu olhar para a boca escancarada de uma porta dupla na extremidade oposta. 

Andou em direção. Seus olhos, já ardendo por causa das partículas de poeira que giravam no ar estagnado, dispararam em direção à boca aberta da porta do local. A escuridão se acumulava, espessa e impenetrável, segredos promissores que era melhor deixar enterrados. 

Mikael alcançou o interruptor de luz que se projetava da parede ao lado da porta. O metal estava frio e escorregadio devido à sujeira. Quando o clique do interruptor ecoou no silêncio de uma tumba, um brilho severo inundou tudo em volta, cegando-o momentaneamente. Após sua visão clarear, notou dois corpos esparramados no chão num quadro grotesco. 

As moscas, encorajadas pelo súbito influxo de luz, banqueteavam-se com abandono mórbido em sua carne exposta, deixando para trás uma rede de rastros negros e brilhantes. 

— Ah… Parece que a festa aqui foi para poucos convidados.

Coçou a cabeça, tentando compreender a carnificina diante de seus olhos.

— Então, um Mephisto está por trás disso, certo? Isso parece bastante plausível. A ideia de que as vítimas chegaram a esse ponto por conta própria não me parece correta. — Balançou a cabeça, como se estivesse processando a informação. Então, de repente, algo o intrigou e ele se deteve: — Não… espere um pouco.

Mikael se aproximou dos corpos caídos no chão e agachou-se, examinando as feridas que se espalhavam por cada parte deles.

— Esses cortes são profundos. Precisos. Não são as garras desajeitadas de um Mephisto. Este atacante… — Parou, franzindo a testa. Uma inquietação tomou conta de seu rosto. — … era humano. 

Ele olhou para os membros superiores. Seus olhos permaneceram nos padrões específicos das feridas.

— E não qualquer humano. — Gesticulou com as mãos, traçando os caminhos dos ferimentos nos braços. — Esses cortes são deliberados. Planejados. Existe um método para essa loucura. Alguém aqui sabia exatamente o que estava fazendo.

Mikael se levantou. O ar casual de antes desapareceu, dando lugar a uma definição sombria. A presença humana nesse massacre havia mudado completamente a situação. Não se tratava mais de um ataque aleatório de criaturas; era um ato deliberado de crueldade. E Mikael, sentindo o peso dessa nova realidade, percebeu que estava diante de um quebra-cabeça muito mais complexo.

— E o que mais me intriga é o motivo. Mephistos e humanos geralmente não têm muitos desentendimentos desse tipo. — disse, coçando o queixo — O caso aqui é mais complicado do que eu imaginei.

Olhando-o, era um homem e uma mulher, e não pôde deixar de sentir a ironia cruel que permeava a cena. 

— Parece que o até que a morte nos separe realmente levou esse casal a sério.

Mikael empurrou ligeiramente os pés, movendo-os para o lado. Em seguida, identificou um símbolo misterioso, como se estivesse exibindo algo que fazia parte de um ritual.

— Há mais para ver.

Ele se agachou para inspecioná-lo melhor: precisamente desenhado, formava um círculo com padrões de linhas intrincados e detalhados, destacando uma figura geométrica central que simbolizava uma entidade.

— Usando o sangue das vítimas… É um artifício tão banal.

Ele franzia a testa, aprofundando-se na análise do símbolo. Com a ponta dos dedos, seguia os padrões, absorvendo a essência do desenho. Seus olhos examinavam cada centímetro, demonstrando uma concentração intensa.

— Hmm, entendi… É realmente complicado, né? Humanos se unindo à Mephistos e usando seus corpos como oferenda. Isso vai além da loucura, é uma traição à nossa própria humanidade.

Ele começou a conectar os pontos, analisando as possíveis implicações da simbologia. Quanto mais se aproximava da verdade, mais sua apreensão aumentava. Cada contradição e cada resposta evasiva intensificavam seu desejo de entender completamente.

— Normalmente, seus truques capturam a alma da vítima. Estes dois devem ter sido os primeiros a ser sacrificados. — Ele esfregou as têmporas com os dedos. — Não consigo compreender como alguém pode se degradar tanto a ponto de fazer alianças com essas coisas e sacrificar vidas humana. É um crime imperdoável.

Ele tirou o celular do bolso e acessou o bloco de notas, nas anotações dos lugares que desejava visitar.

— Vamos descobrir se o mesmo ocorre aqui.


Prairie Berry Winery, 23h23.

Situada nas colinas circundantes e afastada o suficiente do centro da cidade para oferecer um refúgio sereno, as uvas perfeitas que pontilhavam os prados davam ao local uma sensação acolhedora e convidativa. A arquitetura do prédio principal, que mesclava elementos de design clássico e moderno, exalava beleza.

Pensou Mikael que, por trás desse ar de sofisticação e tranquilidade, ainda existia um lado obscuro da presença dos Mephistos na região. A prática de cultivar uvas para a produção de vinho era capaz de atrair criaturas sensíveis a desequilíbrios e distúrbios nesse campo devido a uma conexão inquebrável com o solo. Essas criaturas buscavam ativamente ambientes com alto teor de energia negativa necessária para sua sobrevivência.

Mas ele descobriu, ao chegar à Prairie Berry Winery, apenas uma cena horrível de corpos espalhados pelo chão. Era óbvio, com base naquela visão medonha, que alguém havia chegado antes dele, deixando um rastro terrível de devastação.

As narinas dele foram alertadas pela combinação repugnante do cheiro pungente de sangue com o agradável aroma de uvas fermentadas.

— Isso deveria me encher de ódio, mas nem mesmo isso eu consigo sentir

Mikael sentiu uma sensação de melancolia ao caminhar entre os corpos desprovidos de vida. Mesmo diante da devastação, sua inércia era como um fio fino que o ligava ao mundo exterior.

— Pode ser que eu tenha visto coisas demais.

Observou o caos à sua volta. Uma sombra de frustração cruzou seus olhos, mas era uma frustração contida, como se as emoções estivessem distantes, inalcançáveis.

— Mesmo assim, isso não é normal. — Murmurou, desafiando sua própria apatia. — Este é um desafio difícil que preciso dar conta. O Mephisto realmente não está sozinho, e parece que sua eficácia está sendo reservada para indivíduos como nós.

No entanto, as deduções não eram aplicáveis neste momento.

— Não acredito que esse ser seja uma ameaça colossal. 

Adentrando ao edifício, sentiu a vibração insistente de seu celular no bolso. Retirou o aparelho e percebeu que se tratava de uma ligação de Raven. Levou o celular ao ouvido após atender.

— Opa, boa noite! Alguma novidade?

[Um pouco. Parece que algumas pessoas aqui estão agindo de maneira estranha, como se estivessem meio que em transe.]

— Notou isso também? Achei que só eu estivesse ficando louco.

[Não, definitivamente não é só você. Parece que elas estão executando atividades cotidianas, mas é só isso. A vitalidade e a humanidade parecem ter desaparecido. É como se elas existissem apenas em um estado de vazio.]

Impressionado pela dedicação de Raven, Mikael não podia evitar a sensação de que ela estava à frente dele em muitos aspectos, embora isso não fosse algo fora do comum.

— Você provavelmente deve ter encontrado corpos utilizados para rituais de sacrifício, não é?

Ela hesitou por um momento antes de responder:

— 

[Sim, encontrei. Parece que há um padrão se formando aqui. O Mephisto está usando esses locais para canalizar energia negativa. Estou preocupada com a escala que isso pode atingir.]

Mikael franziu o cenho, ponderando sobre a informação.

— Eles estão usando a vinícola para isso também. Deparei corpos no local e todos eles pareceram servir para alimentar uma coisa maior que nós.

[Isso confirma minhas suspeitas. Os Mephistos têm essa capacidade única de se alimentar da escuridão humana. Eles escolhem lugares saturados de energia negativa, como os de rituais de sacrifício, para se fortalecerem. É como se estivéssemos lidando com uma força que se alimenta do pior da humanidade.]

— Então, cortar essas fontes de energia negativa deve enfraquecer essa coisa?

[Se conseguirmos interromper o suprimento do Mephisto, devemos diminuir consideravelmente o nível de perigo.]

Mikael absorveu a informação, buscando uma estratégia.

— Então, basta só eliminar os cadáveres e pronto? Parece ser bem fácil. Farei uma varredura mais ampla nos pontos identificados.

Ouviu-se um suspiro fundo antes de respondê-lo.

[Não é tão simples como você pensa, Mikael. Deixe que eu cuide disso.]

— Hm? — Levantou uma sobrancelha, confuso. — Explique melhor.

[Sei que você quer ajudar, mas essa é uma questão mais profunda do que apenas localizar e eliminar essas fontes de energia negativa. Há uma conexão intrínseca entre a alma humana e essa escuridão que os Mephistos exploram. É como se minha própria essência compreendesse de alguma forma a natureza dessa energia.]

— Calma, calma aí. Você quer dizer que eu não consigo fazer isso? — Franziu a testa, tentando entender. — E o que você quer dizer com minha própria essência?

Raven se calou por um momento após a pergunta. O silêncio prolongado o deixou ainda mais confuso, enquanto aguardava ansiosamente por uma explicação que parecia escapar entre as palavras não ditas.

[É… difícil explicar. Essa conexão que sinto com a essência humana é como se minha própria alma pudesse tocar as sombras que eles manipulam. Sei que você é eficiente, mas essa tarefa exige sensibilidade, que acredito que só eu posso oferecer. Não quero sobrecarregá-lo com detalhes, mas confie em mim, essa abordagem mais particular é crucial para neutralizar essa ameaça.]

— Isso parece uma desculpa sua, mas vou confiar em você como uma bela Analista de Inteligência.

Um sorriso despretensioso curvou seus lábios. Ele sabia que estava sendo negligente, mas preferia ignorar essa faceta de si mesmo.

Em seguida, alguns sons altos invadiram a ligação, como se a atmosfera festiva também tivesse se infundido em sua conversa. 

— Parece que você anda se divertindo por aí, não é?

[Descobri um clube interessante por aqui.]

— Ah, entendi… Agora você virou frequentadora assídua de clubes? — Um toque de ironia permeou sua voz. — É uma grande mudança, considerando o quanto você não é fã de bebidas alcoólicas.

[É verdade, realmente não sou. Mas esse lugar parece ser um terreno fértil para atividades de Mephistos.]

— Nunca imaginei que um clube pudesse ser o epicentro de atividades sobrenaturais. Mas, sendo você, sempre há algo incomum. O que tem de especial nesse lugar?

[Digamos que, por uma boa causa, estou disposta a explorar um ambiente mais agitado. E esse clube parece ser o ponto de encontro perfeito para algumas atividades de Mephistos. Acredite, estou mantendo minha aversão ao álcool em nome da investigação.]

— Vou fazer de conta que acredito. Mas tem dias que a gente merece uma pausa.

Ela riu levianamente .

[Talvez você tenha razão. De qualquer forma, isso é tudo o que eu queria verificar. Tenho que voltar ao trabalho.]

 Espe…

A frase pairou no ar, carregando um pedido que estava prestes a ser feito.

Com o som do desligamento abrupto da ligação, Mikael mal teve a chance de expressar seu pedido a Raven. Ela já tinha uma ideia do que ele poderia desejar e não estava disposta a perder tempo com algo que parecia trivial.

— Por que essas mulheres me tratam desse jeito?

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